Princípios da Administração Pública: Legalidade

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em 2014

atualizado em jul. 2017

            A legalidade e a legitimidade são condições essenciais do poder do Estado. O que o torna legal e legítimo? Esta pergunta pode ter respostas variadas, dependendo do sistema político econômico a que se refira: num Estado tirânico, é a força, num Estado democrático, o consentimento.

            O princípio da legalidade pode ser expresso mais ou menos da seguinte forma:

A legalidade nos sistemas políticos exprime basicamente a observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita com o direito estabelecido. Ou em outras palavras traduz a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes. Em suma, a acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula (BONAVIDES, 2000, p. 140).

            A legalidade expressa, de forma ampla, uma conformidade com a ordem jurídica vigente (não são poucas as obras que tratam do princípio da legalidade; dentre as tantas obras ver: DI PIETRO, 2001; CARVALHO, 2003; MARRARA, 2005; MEIRELLES, 2010). Em outras palavras, a autoridade dos governantes deve ser regida segundo o que determina a Constituição de uma determinada sociedade, respeitando rigorosamente suas normas, desde os regulamentos, decretos, leis ordinárias, e sua máxima expressão que é a Constituição Federal (BRASIL, 2015). Além de ser estabelecido como um princípio constitucional, o princípio da legalidade também é reforçado de acordo com o artigo 2º da Lei 9.784 de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo em nível Federal, que estabelece outros princípios que devem nortear a Administração Pública e onde é possível notar no inciso I, do parágrafo único, do art. 2º, que os processos administrativos devem observar o critério da atuação conforme a lei e o Direito. Sob esta perspectiva, diz Bonavides, o conceito de legalidade se situa em um domínio exclusivamente formal, jurídico e técnico. Veja abaixo uma espécie de hierarquia no que diz respeito ao princípio da legalidade (Disponível em: Slideshare, slide 9, Acesso em 17/06/2017):

           Madeira (2014, p. 35) destaca que o princípio da legalidade é enunciado por duas vezes na Constituição Federal, seja no art. 5º, II, – legalidade em sentido lato sensu –, “cuja enunciação é oriunda da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de que legalidade consiste em que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”; e aparece enunciado como princípio da Administração Pública no art. 37, caput – que podemos chamar de legalidade administrativa ou reserva da lei (SILVA, 2001; SANTOS NETO, 2003) reserva legal, supremacia da lei (MARRARA, 2014). Como afirma Marrara (2014, p. 26): “a regra da ‘reserva legal’ em sentido amplo, significa que o Estado não age sem suporte no Direito (relação de juridicidade necessária) e, sobretudo, na Constituição (relação de constitucionalidade necessária)”. Santos Neto (2003, p. 162) complementa: “O princípio da reserva de lei, por seu turno, concerne a um conjunto de matérias constitucionalmente definidas que devem ser reguladas exclusivamente por lei”.  No que diz respeito à supremacia da lei, Marrara (2014, p. 27) pondera como, neste caso, “a ação estatal é considerada válida apenas se não contrariar, nem for além das normas nas quais está fundamentada” (MARRARA, 2014, p. 27).

            Madeira destaca ainda que a distinção entre o primeiro e o segundo caso se trata em que o art. 5º diz respeito ao particular, a quem é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, ao passo que o art. 37º se refere à Administração Pública que deve sempre agir em conformidade com a lei. No caso da Administração Pública a lei constitui condição para a ação, ou seja, como o poder do Estado deve agir. No que concerne a Administração Pública, Miranda (2008, p. 3) ressalta que esta “não pode agir contra a lei (contra legem) ou além da lei (praeter legem), só podendo agir nos estritos limites da lei (secundum legem)”.

            Veja o quadro abaixo com a distinção entre o que podemos chamar de “legalidade privada” e “legalidade pública” (Disponível em: Âmbito Jurídico.com.br, Acesso em 17/06/2017):

            Nesse sentido se pode dizer que o princípio da legalidade tem um significado para o particular e outro para o Estado. Do ponto de vista do indivíduo significa dizer que tudo lhe é permitido desde que não haja uma proibição legal. Já para o Estado só pode fazer aquilo que a lei permitir, por exemplo, o Estado não pode punir alguém por um ato criminoso se não existir uma lei que defina tal ato como crime, como é o caso do Marco Civil da Internet, que prevê uma série de situações que envolvem o mundo do ciberespaço. Antes do Marco Civil (como em todos os outros casos semelhantes) podemos dizer que prevalece o inciso XXXIX do art. 5º da CF/88: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 2015).

            Por sua vez a “legitimidade – afirma Bonavides – é a legalidade acrescida de sua valoração” (2000, p. 141). E de acordo com Santos Neto (2003, p. 164): “O conceito de legitimidade entrou no rol dos termos clássicos da teoria política após a famosa consideração de Max Weber sobre os três tipos de poderes legítimos. Legitimidade é, como a legalidade, um atributo do poder”. A legitimidade, assim considerada, inquire acerca dos preceitos fundamentais que justificam ou invalidam o exercício do poder. Por que uns mandam e outros obedecem? Por que um poder deve ser obedecido? Questões como essas se inserem no campo da reflexão sobre a legitimidade do poder. Na Idade Média, por exemplo, a legitimidade do poder estava fundamentada em Deus, na religião, no sobrenatural. Já na modernidade, essa mesma legitimidade passou a estar fundamentada no povo, na democracia, no consentimento dos cidadãos.

            De qualquer modo, legalidade e legitimidade parecem princípios estritamente relacionados. De uma forma geral, a legalidade representa o aspecto formal e jurídico do poder, e a legitimidade, uma questão substancial, ideológica. Segundo essa linha de raciocínio, um governo será legítimo, se obedecer as regras vigentes e estabelecidas.

           

Breve Histórico

            Os homens sempre necessitaram de normas para estabelecer um padrão de conduta e comportamento em sociedade e a legalidade não deixa de ser uma tentativa de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, obras da razão, que possa livrar os indivíduos da arbitrariedade humana por parte daqueles que detém o poder. Aragão (2001, p. 114) pondera a este respeito que o homem “sempre precisou de normas estáveis e previsíveis pelas quais pudesse pautar o seu comportamento, tendo criado ao longo da história os mais diversos fundamentos para que se conformasse às limitações impostas à sua liberdade”. O princípio da legalidade implica em normas e regras que procura determinar, de certa forma, que não há autoridade superior à da lei; que o governante não governa senão em virtude dela, e que é unicamente em nome da lei que se pode exigir dos indivíduos obediência.

            Madeira (2014, p. 36) ressalta que, de modo mais específico, o princípio da legalidade encontra fundamentos nas ideias iluministas e na origem do Estado de direito, a partir da elaboração de teóricos como Montesquieu, um dos primeiros a defender uma divisão clara entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas é possível ir ainda mais longe na origem deste princípio, que remonta ainda “à Magna Carta de 1215, documento imposto pelos barões ingleses que se preocupavam em limitar o poder do rei João Sem Terra”. Os barões pretendiam, portanto, limitar o poder do governante através de um ordenamento jurídico, substituindo a vontade individual do monarca pela “vontade geral” elaborada por “representantes” do povo.

            Santos Neto (2003, p. 157) ressalta, por sua vez, que o princípio da legalidade

é contemporâneo do Estado de Direito. Nasceu, entretanto, com o Estado Liberal, essencialmente ligado à idéia de limitação do poder. Em período anterior à Revolução Francesa, as técnicas de governo do absolutismo se lastreavam em premissas que atribuíam à pessoa do soberano a condição de escolhido de Deus, em razão do que concentrava em suas mãos a fonte de todo o Direito, coisa que lhe permitia atuar tanto por normas gerais e abstratas como por atos singulares que, inclusive, podiam contrariar aquelas.

            Mas é, sem dúvida, à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que a ideia de legalidade aparece claramente enunciada, ao qual se deve acrescentar também as “constituições” decorrentes das Revoluções Liberais: inglesa, americana e francesa. Nesse cenário rompe-se com a ideia de um direito natural, que entende o direito como um conjunto de leis universais, necessárias e imutáveis, seja deduzidas pela razão ou oriundas de um poder divino e passa a tratar o direito como uma convenção e normas que devem ser estabelecidas socialmente.

            A Revolução Francesa e, com ela, as demais revoluções liberais, ao rechaçar a ideia de que a fonte do Direito tem um fundamento divino, abriu espaço para se pensar que sua fundamentação deve ser encontrada nela própria, na vontade geral, como pretendia o filósofo do iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau.

            Merece destaque a este respeito a Escola de Direito Público de Estrasburgo e a dogmática alemã, que procuraram fundamentar a ideia de um Estado de Direito. Analisando as contribuições desta escola, Santos Neto (2003, p. 158) afirma que: “O âmago da teoria do Estado de Direito se constitui no princípio segundo o qual os diversos órgãos do Estado não podem agir, senão em virtude de uma habilitação jurídica”.

            Analisando o pensamento do sociólogo alemão Max Weber e discutindo a relação entre Estado e legalidade, Dutra (2004, p. 61-62) ressalta como esse imbricamento remete à noção de um Estado regido pela legalidade portador de algumas características peculiares:

Primeiro, o seu aspecto processual, já "que qualquer direito pode se criar e se modificar por meio de um estatuto sancionado corretamente quanto à forma"; segundo, a legalidade, já que "se obedece, não a pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, a qual estabelece, ao mesmo tempo, a quem e em que medida se deve obedecer

            Merece destaque também a concepção kelseniana a respeito da legalidade administrativa, inserida em um processo de produção jurídica que “se executa paulatinamente a partir de uma norma fundamental [...] [e] não poderia atuar de outra maneira senão executando normas antecedentes, ainda que estas sejam ditadas por ela própria, como no caso dos Regulamentos” (SANTOS NETO, 2003, p. 159). Em outras palavras, a Administração está condicionada à existência do Direito e, por conseguinte, da Lei.

           Tal elaboração do conceito de legalidade é o que tem inspirados as diferentes constituições de Estados contemporâneos, como afirma Santos Neto (2003, p. 161 – grifos do autor):

A Constituição Alemã, de 1949 trouxe prescrito em seu artigo 20 que "o poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito". As Constituições Portuguesa de 1976 e Espanhola de 1978 (que influenciaram sobremaneira o legislador constituinte brasileiro de 1988) trazem prescrições similares; a primeira em seu artigo 266 a segunda em seu artigo 103.1, repetem as premissas germânicas apontadas, de modo que na Espanha a disposição da Carta é expressa no sentido de que a "os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar com justiça e imparcialidade no exercício de suas funções"

            Historicamente pode-se dizer que a lei “já foi a expressão da vontade de Deus, depois a vontade do príncipe. Atualmente, acreditamos que seja a expressão da soberania do povo” (ARAGÃO, 2001, p. 115). Fundamentada na vontade de Deus ou dos homens, ditada por Jeovah ou Moisés, Alá ou Maomé, gravada em tábuas de pedra ou papiros, sempre tinham como função estabelecer uma norma de conduta. Hoje essa atribuição compete principalmente ao Parlamento, ao Poder Legislativo, e procura estabelecer normas que devem ser seguidas pelo particular e pelo administrador público.

 

Referências Bibliográficas

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BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional didático. 9. ed. Belo Horizonte, Del Rey: Imprenta, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

DUTRA, Delamar José V. A legalidade como forma do Estado de direito. Kriterion, Belo Horizonte, n. 109, p. 58-80, jun. 2004. Acesso em 18/06/2017.

MADEIRA, José Maria P. Administração Pública: Tomo I. 12. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014.

MARRARA, Thiago. A legalidade na relação entre Ministérios e agências reguladoras. In: ARAGÃO (org.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

____. As fontes do direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 1, n.1, p. 23-51, 2014. Acesso em 18/06/2017.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

MIRANDA, Maria Bernadete. Princípios Constitucionais do Direito Administrativo. Revista Virtual Direito Brasil, vol. 2, n. 2, p. 1-12, 2008. Acesso em 25/05/2017.
SANTOS NETO, João Antunes dos. Legalidade e decisões políticas. Revista de Direito Administrativo, vol. 234, p. 147-175, out./dez. 2003. Acesso em 19/06/2017.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 2001.