A Alegoria da Caverna

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em 2016

 

            A Alegoria da Caverna é uma das histórias mais fascinantes de toda a tradição filosófica ocidental. O livro VII da obra A República (em grego: Πολιτεια; politéia) de Platão inicia com tal alegoria (para conhecer em detalhes esta história acesse o link: O Mito da Caverna).

Sócrates propõe a Gláucon que imagine homens com algemas nas pernas e no pescoço desde a infância, vivendo numa habitação subterrânea em forma de caverna. Eles ali vivem sem poder mover a cabeça, nem se locomover, forçados a olhar apenas em frente, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Apenas um fogo que está atrás deles serve-lhes de iluminação. Entre a fogueira e os prisioneiros há uma via ascendente e, ao longo dessa, um muro, ao lado do qual passam pessoas transportando objetos de todos os tipos (LAZARINI, 2007, p. 42).

            Com esta alegoria Platão consegue resumir de forma magistral os mais importantes fundamentos do seu pensamento filosófico, a partir da ideia da existência de dois mundos, e que vivemos aprisionados pelos nossos sentidos às correntes da ignorância, e que só o esforço intelectivo e filosófico pode nos ajudar a nos libertar de tais amarras e contemplar uma realidade inteiramente nova e diferente daquela que estamos habituados.

A condição dos prisioneiros que só conseguem enxergar as sombras dos objetos projetadas na parede do fundo da caverna é semelhante à nossa, prisioneiros que somos de nosso corpo e de nossos sentidos. Nossa alma aspira ao mundo das ideias, mas nossos sentidos nos dificultam chegar a ele. Na verdade, os impulsos da alma estão como que imobilizados pela certeza de que a realidade não é outra coisa senão a que nos apresentam os sentidos, e pela ilusão de que a felicidade e o bem se reduzem aos prazeres sensíveis (LAZARINI, 2007, p. 44).

            A Alegoria da Caverna é uma história fascinante e já foi objeto de análise de inúmeros pesquisadores e estudiosos da obra platônica. Na visão de Oliveira (2015, p. 200), Platão quer demonstrar que “[...] As sombras são as aparências sensíveis das coisas que os indivíduos percebem. Platão quer alertar que o indivíduo deve olhar as coisas para além das aparências”.  Lazarini (2007, p. 31) destaca o fato de que através desta alegoria, a reflexão filosófica proposta por Platão é de “[...] fazer a alma voltar o olhar para o mundo divino das ideias” . E Rodrigues (2005, p. 49-50) aponta para o fato de que a Alegoria da Caverna pode ser ainda “[...] uma apologia à coragem intelectual, o ato de descobrir a si mesmo, renegando a cópia das coisas como se fossem verdadeiras e conduzindo-se para um processo de ‘auto-conhecimento’”. Neste processo somos conduzidos “[...] pelas fendas do verdadeiro conhecimento, nem que para isso corra o risco de ser repudiado pelos outros que preferem a aparência das coisas, a comodidade do aparente saber, não importando quão distante esteja da verdade” (id., 2005, p. 50). Trata-se, por fim, da passagem da ignorância para o conhecimento, das trevas para a luz, da mera opinião para a sabedoria, através de diferentes patamares e níveis de aprendizado intelectual “[...] do mais ilusório ao mais real e do mais obscuro ao mais luminoso” (id., 2005, p. 50).

a caverna é o nosso mundo visível; a luz da fogueira em seu interior é o sol; a subida da caverna em direção ao mundo exterior é a ascensão da alma à esfera inteligível; o sol é a forma do Bem; os olhos, a inteligência; a visão, o conhecimento, e os objetos visíveis fora da caverna são as Formas platônicas, o verdadeiro objeto do conhecimento (QUEIRÓS, 2008, p. 96-97).

            A caverna é o mundo sensível, o mundo em que vivemos. Todo o nosso conhecimento neste mundo são, na realidade, sombras projetadas do mundo inteligível (o mundo das Ideias). O homem comum é prisioneiro deste conhecimento e toma este mundo como única realidade possível. Acontece que alguns destes prisioneiros, por meio de um processo difícil e até mesmo doloroso, consegue libertar-se de suas amarras e tem então a possibilidade de conhecer o mundo fora da caverna, olhando primeiro as sombras e imagens, depois os próprios objetos, depois os reflexos até finalmente conseguir olhar o próprio Sol, que simboliza o Ser em si, a Ideia Suprema do Bem.

            Na Alegoria nada nos é dito a respeito dos “prestidigitadores”, ou seja, os ocupantes do lado oposto da caverna e que “[...] por cima e ao longo de um muro, situado entre os prisioneiros e a fogueira, transportam e exibem todas as espécies de objetos, cujas sombras são refletidas no fundo da caverna, acessível à visão dos homens manietados” (QUEIRÓS, 2008, p. 97). Nenhuma explicação sobre sua origem ou função nos é dada e talvez sua relevância na Alegoria seja, de fato, mínima, servindo apenas como produtores de imagens e sons, cujas falas são percebias pelos prisioneiros como se fossem emitidas das sombras projetadas na parede e que

[...] não passam de políticos, sofistas e artistas, cuja atividade consiste, então, em iludir os cidadãos com sombras, aparências e simulacros da realidade, contando com o fato de tais imagens exigirem, para serem vistas, apenas um mínimo de esforço e acuidade dos olhos (inteligência) naquele regime de semi-obscuridade (QUEIRÓS, 2008, p. 97).

            Platão cria tal alegoria para poder resolver os impasses criados envolvendo a escola eleática de Parmênides e o pensamento do filósofo Heráclito, ou seja, a discussão que envolve a imutabilidade ou mutabilidade do Ser. Platão fragmenta a existência do real em dois mundos: o sensível e o inteligível, procurando, assim, solucionar a questão. Por um lado, Heráclito tem razão, ao dizer que tudo flui e nada permanece o mesmo, pois o mundo sensível é o mundo da mutabilidade, do eterno devir, no qual todas as coisas estão em constante fluxo. Mas para além do mundo sensível, deve haver um mundo de essências eternas e imutáveis, inclusive a Ideia Suprema do Bem e da Beleza Absoluta, que não é passível nem de aumento e nem de diminuição e que não pode ser de natureza corruptível, ou seja, é preciso que haja um outro mundo, o mundo inteligível e, nesse caso, Parmênides está com a razão. O mundo sensível é uma cópia do mundo inteligível, das Ideias eternas e imutáveis. Os sentidos não revelam o mundo real, mas a mutabilidade do mundo fenomênico; o pensamento, por outro lado, nos remete ao mundo das Ideias e é através do pensamento que nos é revelado o mundo inteligível, eterno e imutável.

            A Teoria das Ideias formulada por Platão representa o núcleo central de sua teoria do ponto de vista metafísico e na Alegoria da Caverna corresponde à realidade exterior da caverna.

As Ideias são realidades inteligíveis e incorpóreas. A primeira característica que define a estatura metafísica das Ideias é a inteligibilidade à qual está estreitamente ligada à característica da incorporeidade [...] A inteligibilidade, portanto, exprime uma característica essencial das Ideias, que as contrapõe ao sensível, que lhes impõe um âmbito de realidade subsistente acima do próprio sensível, e que, justamente, por isso, só é captável com a inteligência que saiba destacar-se, adequadamente, dos sentidos (Fédon 65d – 66a apud NODARI, 2004, p. 366)

            Mas a Alegoria da Caverna também tem uma dimensão gnosiológica, ou seja, também é uma forma metafórica de falar sobre os diferentes modos de como homens e mulheres conhecem e percebem a realidade. Como esta alegoria nos ajuda a entender o modo pelo qual o homem pode chegar ao conhecimento? De que forma o pensamento pode chegar à verdade? Como é possível ter acesso ao mundo inteligível, em outras palavras, como é possível conhecê-lo? Este é o assunto da teoria do conhecimento e da gnosiologia que podemos desmembrar em pelo menos quatro grandes questões:

  1. a questão da possibilidade: é possível conhecer a realidade do mundo tal qual ele é?
  2. a questão do método: como é possível esse conhecimento?
  3. os instrumentos do conhecimento: os sentidos e a razão.
  4. o objeto do conhecimento: o mundo sensível e o mundo inteligível.

 

            O objetivo da filosofia platônica é claro: ascender ao conhecimento verdadeiro, epistêmico, científico e filosófico, abandonando o conhecimento falso da doxa e da opinião.

            Platão fala de diferentes estágios de acesso ao conhecimento, que poderíamos chamar de diferentes níveis de maturidade psicológica e espiritual. Veja o diagrama abaixo para entender melhor este processo de percepção da realidade:

            O diagrama acima simboliza o “Mito da linha dividida”, que aparece no final do livro VI da obra Πολιτεια (A República). E a Alegoria da Caverna na realidade é uma forma simples de tentar explicar tal mito, que divide o conhecimento a partir de quatro modos de relação com a realidade (sensível e inteligível) como vimos no esquema acima (para conhecer em detalhes o Mito da Linha Dividida acesse o link: Mito da Linha Dividida). Com efeito, ao terminar a explicação sobre os diferentes níveis de conhecimento usando como imagem a “linha dividida” e para tornar ainda mais claro e compreensível o entendimento de seus interlocutores é que Sócrates irá propor no diálogo a imagem do Mito da Caverna que se inicia no Livro VII da Πολιτεια (PLATÃO, 1993; LIMA, 2007). Com efeito,

A alegoria da caverna faz os livros VI e VII manterem uma conexão direta. Pode-se dizer que o livro VII é inserido no final do livro VI, quando Platão faz uma analogia com o Sol, e a ela agrega a da linha: ele compara os diversos graus do conhecimento presentes no mundo sensível e no mundo inteligível a uma linha reta dividida (LAZARINI, 2007, p. 38)

            O primeiro modo de relação com o mundo é a eikasia: trata-se do domínio da opinião (doxa) que se forma de modo impreciso, incompleto, sem um conhecimento seguro sobre o mundo. A pistis (crença, convicção) é um conhecimento algo mais elaborado que inclui as ciências naturais como a botânica, a zoologia, biologia etc. Mas é ainda um conhecimento do mundo sensível, mutável, imperfeito, marcado, por isso mesmo, pela imprecisão do conhecimento sensível. É objeto das crenças.

            Para além do mundo sensível há o mundo inteligível e o primeiro tipo de relação com essa realidade é caracterizado pela geometria. Por certo, porque as figuras geométricas são entes ideais, portanto, atinge-se um nível de abstração, embora esta se dê ainda com alguma relação com o mundo sensível. É ainda um mundo de hipóteses. A dianoia (a faculdade de raciocínio; inteligência discursiva) se exerce sobre as coisas matemáticas e prepara o espírito para o conhecimento das Ideias. “A geometria assim nos prepara para a sabedoria. Que ninguém entre aqui se não for geômetra” (BERGSON, 2005, p. 112) – diz-se que era a inscrição que ficava no frontispício da escola de Platão, A Academia.

           Por fim o conhecimento das realidades inteligíveis só é dado pela intuição intelectual (a faculdade da alma denominada noesis ou nous), por meio da qual atingimos o conhecimento verdadeiro das coisas. O mundo das Ideias, o Hiperurânio, que só pode ser captado pela parte mais elevada da alma, isto é, pelo intelecto. Assim,

[...] a primeira região é subdividida em duas partes, aquela das meras imagens - sombras, reflexos, espelhamentos - e em seguida, aquela dos corpos sensíveis em geral - animais, plantas, objetos naturais e produzidos pela arte dos homens (510a). A segunda região geral, a dos seres inteligíveis, por sua vez, é também subdividida: em sua primeira parte existiriam ideias ainda apoiadas em elementos do sensível, estes últimos seriam a matéria para a construção de raciocínios hipotéticos e deduções inteligíveis, este é o domínio intermediário, região por excelência das matemáticas; finalmente, na outra e derradeira parte se atingiriam as ideias puras que dariam acesso ao principio absoluto, principio não-hipotético (anypóthetos), que seria o Bem (510b). Este, como princípio absoluto, como Ideia das Ideias, possuiria uma "divina transcendência" (daimonías hyperbolês - 509c), seria dele que emanaria todo o processo do conhecimento, dele os objetos do conhecimento humano receberiam a sua cognoscibilidade, o seu ser (tó einai) e a sua essência (ousia), ainda que ele próprio, o Bem, não seja ousia - como afirma-se em 509b - "mas sim, algo que ultrapassa de longe a ousia em majestade e potência" (BENOIT, 1995, p. 80-81).

            Platão fala, assim, em graus de conhecimento do mundo sensível e do mundo inteligível, a fim de poder explicar os diferentes modos de conhecimento. E o modo pelo qual ascendemos do mundo sensível ao mundo inteligível é através da dialética.

 

A alegoria da caverna apresenta a dialética como movimento ascendente que liberta o nosso olhar da cegueira causada pelos sentidos para vermos a luz das ideias através da razão. O caminho em direção à luz é gradual e demorado, por isso é preciso constante disciplina e diligência. A dialética é, segundo Platão, um método rigoroso através do qual se chega à filosofia (LAZARINI, 2007, p. 45).

 

            O filósofo é aquele que contempla a verdade e que deve voltar à caverna (dialética descendente), contrapondo o movimento anterior (dialética ascendente) em que o prisioneiro sai da caverna para a região superior (para compreender melhor o que é a dialética e como ela é necessária ao conhecimento filosófico, veja o texto em nosso website sobre Platão).

            Os homens comuns se detêm no nível da opinião. Os matemáticos ascendem ao nível da dianoia. Só os filósofos (como o entende Platão) tem acesso à noesis. Por isso o Filósofo é também o Dialético: somente através da dialética, o intelecto supera as sensações e todos os elementos ligados ao sensível; capta as Ideias na sua pureza, ascendendo de Ideia em Ideia até a Ideia Suprema, o Incondicionado.

Disponível em: Slideshare, slide 3 (Acessado em 24/02/2016)

 

            Mas a genialidade de Platão vai ainda mais além, pois a Alegoria da Caverna, além de servir para ilustrar de forma simbólica seu pensamento filosófico, metafísico e gnosiológico, serve também para ilustrar seu pensamento a partir de outras diferentes perspectivas, como se poderá perceber através dos links abaixo:

Interpretação Política da Alegoria da Caverna

Interpretação Ética e Religiosa da Alegoria da Caverna

Interpretação pedagógica da Alegoria da Caverna

A Alegoria da Caverna em Quadrinhos, por Maurício de Souza

 

Referências Bibliográficas

BENOIT, Alcides Hector R. Platão além do dogmatismo. Trans/Form/Ação, Sao Paulo, vol. 18, n. 7, p. 79-93, 1995. Acessado em 25/02/2016.

BERGSON, Henri. Cursos sobre a filosofia antiga. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LAZARINI, Ana Lúcia. Platão e a educação: um estudo do Livro VII de A República. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 2007. Acessado em 24/03/2016.

LIMA, Jorge dos Santos. A perfeição da justiça em Platão. Uma análise comparativa entre a Alegoria da Linha Dividida e os personagens d’A República. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2007. Acessado em 24/03/2016.

NODARI, Paulo César. A doutrina das Idéias em Platão. Síntese – Revista de Filosofia, v. 31, n. 101, p. 359-374, 2004. Acessado em 25/02/2016.

OLIVEIRA, José Silvio de. A paideia grega. A formação omnilateral em Platão e Aristóteles. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos-SP, 2015. Acessado em 24/03/2016.

PLATÃO. A República. 7. ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

QUEIRÓS, Antônio José V. de. Os bastidores da caverna de Platão (entrelinhas de uma alegoria). O que nos faz pensar, n. 24, p. 95-115, out. 2008. Acessado em 08/03/2016.

RODRIGUES, Elza Maria. Um breve estudo sobre a educação na República de Platão. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 2007. Acessado em 24/03/2016.

 

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2. Projeto Ético-Político-Pedagógico na República de Platão

 

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