A Ética Socrática

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em abr. 2016

atualizado em mai. 2022

            A formação do homem grego levava em consideração a ideia de excelência e um tipo ideal na qual o conceito de arete (virtude) desempenha um papel crucial: “O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de arete, que remonta aos tempos mais antigos” (JAEGER, 1995, p. 25). Jaeger (1995, p. 25) considera que não existe um termo equivalente exato na língua portuguesa para arete: “mas a palavra ‘virtude’ [...] na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega”.

         O uso do conceito de arete se diferenciou ao longo do tempo da história da formação do homem grego. Se inicialmente devemos considerar a arete sobretudo  relacionada como atributo próprio de nobreza, como é o caso da nobreza cavaleiresca, posteriormente, com Homero “o conceito de arete é frequentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é, não só para designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça” (JAEGER, 1995, p. 26). Encontramos também em Homero a arete no sentido de qualidades morais ou espirituais e ainda “a força e a destreza dos guerreiros e lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente ligado a ela” (JAEGER, 1995, p. 27).

         Posteriormente, no pensamento ético de filósofos como Platão e Aristóteles, a arete só poderá ser alcançada ou atingir a perfeição em “almas de escol”, como afirma Jaeger (1995, p. 34): “o reconhecimento da grandeza de alma como a mais elevada expressão da personalidade espiritual e ética fundamenta-se, tanto para Aristóteles como para Homero, na dignidade da arete”.

        A questão da virtude e, consequentemente da arete, aparece comumente nas obras de diferentes pensadores gregos.

Como ressaltou Aristóteles, a virtude não é uma sequência ou uma repetição de atos, embora a ação seja a marca de um sujeito moral. Ela é ―uma disposição adquirida voluntariamente (Ét. Nic. 11 VI, 15) [...] Xenofonte nos mostra Sócrates incentivando os discípulos a praticar a virtude (Mem., I, VII, 1), mais pelo seu exemplo do que por seu ensinamento (ibid., 1,11,3). Platão apresenta, inicialmente, em Mênon (97b-100b), uma virtude de tipo socrático praticada no mundo sensível, por meio da ação, inspirada por um favor divino e definida como opinião verdadeira (v. dóxa); depois, na República (IV, 42ge441c), ele distingue três espécies de virtude em função, ao mesmo tempo, das potências da alma e das classes sociais; o seja, há três potências da alma: a concupiscência, que tem sede no ventre e preside a vida vegetativa; o coração, que tem sede no peito e preside a vida afetiva (poder-se-ia chamar essa tendência de ―impulso espontâneo para os valores); por fim, a razão, que tem sede na cabeça e preside a vida intelectual. A harmonia da alma e a da sociedade precisa de três virtudes, ao mesmo tempo específicas e hierarquizadas: - temperança, que regra a concupiscência e é própria da gente do povo; - coragem, que regra o coração e é própria dos guerreiros; - sabedoria, que regra a razão e é própria dos governantes. Uma quarta virtude, a justiça é necessária à alma inteira e às três classes, pois é ela que garante a harmonia no indivíduo e na pólis. Essas quatro virtudes platônicas costumam ser chamadas ―virtudes cardeais. Encontram-se vários esboços delas antes da República; no Protágoras (349b): justiça, sabedoria, santidade e coragem são quatro aspectos de uma virtude única, às quais se soma, adiante, a temperança (361 b); em Fédon, aparecem dois trios: coragem, sabedoria e justiça (67b) e temperança, justiça e coragem (68b-e) (GOBRY, 2007, p. 25).

            Não é o caso aqui de fazer um estudo pormenorizado do conceito de arete mas o seu entendimento é fundamental para falar sobre a ética em Sócrates pois, como afirma a este respeito Santos (2014, p. 24), Sócrates “trata da areté numa perspectiva de ― [...] ciência ou conhecimento” e, igualmente, a partir de uma visão mais internalizada do sujeito, considerando que a filosofia de Sócrates baseava-se numa introspecção do olhar humano para dentro de si.  Está é a marca da ética socrática o que implica também na concepção de arete: uma ética centrada no homem. “Sócrates se caracteriza essencialmente em trabalhar estes aspectos, que para ele são de fundamental importância, pois são os meios pelos quais o ser humano desenvolverá, dentro de si mesmo, uma profunda transformação em seu interior” (SANTOS, 2014, p. 25).

         Se Sócrates procura sondar o homem em sua interioridade e o aperfeiçoamento do interior humano, é com o objetivo de alcançar a excelência da alma humana. E o caminho para alcançar essa excelência humana era examinando-se a si mesmo.

        A visão de areté, para Sócrates, e consequentemente a moralidade, deveria estar introjetada no interior do homem, tornando-o assim um indivíduo virtuoso. A ética socrática pressupõe o autoconhecimento do ser humano. O conhecimento de si mesmo será um processo para atingir a virtude.

A virtude se constitui num valor supremo, em Sócrates, pois é conhecimento e este está introjetado na alma do ser humano e, nisso se ―[...] fundamenta a transformação operada pelo pensador ateniense, porque os valores fundamentais gregos até àquele momento privilegiavam o corpo, por exemplo, a vida, a saúde, o vigor físico, a beleza; os ligados aos aspectos externos do homem, como a riqueza, o poder, a fama (SANTOS, 2014, p. 24).

            Sócrates alterou a perspectiva dos estudos voltados para a cosmologia e a physis, dos filósofos pré-socráticos, e enfatizou a necessidade do conhecimento antropológico (do homem). Ao considerar a areté também a partir de uma perspectiva mais interna do homem “agora novamente ele muda o vértice conceitual da areté e a coloca na camada mais profunda do ser humano – na alma” (SANTOS, 2014, p. 24-25).

            A ética de Sócrates está centrada no homem, cujo referencial é o aperfeiçoamento da alma. Sócrates dissertava sobre uma vida bem vivida cuja finalidade era o cuidado si e o cuidado com os outros: “A essência do homem é sua alma (psiché). Esta concepção de Sócrates era um dos critérios para estabelecer os fundamentos da nova moral” (SANTOS, 2014, p. 41).

[...] a superioridade de Sócrates sobre os sofistas consistia, sobretudo nisso: tendo compreendido que o homem distingue-se de qualquer outra coisa pela sua alma, Sócrates pôde também determinar em que consiste a areté humana: ela não pode ser senão o que permite à alma ser boa, isto é, ser aquilo que pela sua natureza ela deve ser. Assim, cultivar a areté significará tornar a alma ótima, realizar plenamente o eu espiritual, alcança o fim próprio do homem interior e, com isso, também a felicidade. Mas que é a virtude? A resposta de Sócrates é bem conhecida: a virtude [cada uma e todas as virtudes] é ciência ou conhecimento, e o contrário da virtude, isto é, o vício [...], é privação de ciência e de conhecimento, vale dizer, ignorância (SANTOS, 2014, p. 24).

            A reflexão sobre os valores e preceitos morais aparece muito clara em Sócrates. É muito comum vermos o filósofo, interpretado nas obras de seu discípulo Platão, indagando de seus concidadãos o que eles consideravam ser a coragem, a justiça, a amizade, o amor, ou seja, princípios e valores de ordem moral: “a coragem (andreia) no Laques, a moderação ou temperança (sophrosyne) no Cármides, a santidade (hosiotes) no Êutifron, a justiça (dikaiousyne) no Górgias e no Trasímaco (República I)” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 79-80).

            A valentia ou coragem (Laques), a prudência ou moderação (Cármides), a piedade ou santidade (Eutífron) são as virtudes examinadas nos diálogos menores. “Os diálogos socráticos menores são assim concebidos como investigações éticas características de Sócrates” (JAEGER, 1995, p. 601).

            Mas é na Apologia de Sócrates que vemos o afã do filósofo ateniense em educar os cidadãos na verdadeira arete. “Pela Apologia de Platão sabemos que o verdadeiro Sócrates era principalmente um grande pregador da virtude e do cuidado da alma” (JAEGER, 1995, p. 598). “Na Apologia, Sócrates dá demonstrações de como deve ser um sujeito virtuoso ao cuidar de si próprio. Ali ele tinha como objetivo criar uma inquietação geral nos homens e os fazer refletir de como deveriam agir corretamente” (SANTOS, 2014, p. 18). O Sócrates de Platão se preocupa fundamentalmente com a virtude e “ao longo das suas tentativas para determinar o que cada virtude é, vemos revelar-se sempre, ao atingir o cume da investigação, que ela tem de consistir por força no conhecimento do bem” (JAEGER, 1995, p. 599).

            Sócrates procurava fazer o seu interlocutor refletir em questões morais evidenciando assim o caráter eminentemente filosófico da reflexão sobre os valores. Mas Sócrates não parava por aí. Estes valores, que os atenienses chamavam (como nossa sociedade de uma forma geral) de virtude, faziam com que Sócrates os interrogassem então para saber o que é a virtude. E se Sócrates tivesse como resposta que a virtude é agir em conformidade com o bem, então ele questionava, mas o que é o bem?

            Sócrates procurava de alguma forma indagar os cidadãos atenienses a respeito das virtudes, sua essência, valor, obrigação. Como saber se uma conduta é boa ou não, virtuosa ou reprovável? Por que o bem é uma virtude e o mal um erro? É preferível ser justo ou injusto? Uma outra indagação era: que é o homem? A resposta de Sócrates é que o homem é a sua alma, uma vez que é a alma que o distingue de todas as outras coisas. A resposta para esta questão nós podemos encontrar no diálogo de Platão – Alcibíades.

Sócrates: Uma coisa, portanto, é o homem, outra o seu corpo.

Alcibíades: Parece que sim.

Sócrates: Que é, pois, o homem?

Alcibíades: Não sei dizer.

Sócrates: Isso, porém, podes dizer que ele é o que se serve do corpo.

Alcibíades: Sim.

Sócrates: E o que é o que se serve do corpo senão a alma?

Alcibíades: Não é outra coisa [...].

Sócrates: A alma, portanto, nos ordena conhecer quem nos admoesta: - Conhece a ti mesmo (PLATÃO, 2007, p. 129-130).

             Com estes questionamentos Sócrates forçava os indivíduos a refletirem sobre si mesmos e suas próprias ações. Além disso, a indagação ética socrática dirige-se não só ao indivíduo, mas também à sociedade.

Enquanto a sociedade corria em busca dos prazeres oferecidos por Atenas, como os debates políticos, os jogos, o teatro, a arte, a estética, os exercícios físicos, enfim, o desfrute do corpo, Sócrates está noutro viés, pois sua preocupação era com a alma do indivíduo. Ele observava as pessoas correrem em busca de futilidades, coisas efêmeras, aspectos banais; a postura materialista, consumista, narcisista daquela sociedade fazia com que Sócrates criticasse veementemente tal postura do cidadão ateniense. Por isto a busca cada vez mais acentuada de nutrir a alma, fortalecer o espírito (SANTOS, 2014, p. 22).

            Ao propor o exame de si mesmo e dos outros, conforme ele afirma na Apologia – “pelo que julguei perceber, era viver a filosofar, examinando-me a mim mesmo e aos outros” (PLATÃO, 1983, 23c) – Sócrates busca o real cuidado que o homem deve ter. De nada importa valorizar algo de menor importância e o modo de vida dos atenienses estava muito centrado nisto, perdendo tempo com coisas que não engrandeciam a alma. Centralizar a vida apenas no cuidado com o corpo, com riquezas e bens materiais, e não cuidar da alma, é como se não cuidasse de nada.

            As questões socráticas podem ser consideradas como fundamento da ética ou filosofia moral porque procuram definir o campo no qual os valores morais podem ser estabelecidos além de tentar encontrar seu ponto de partida que, para Sócrates, é a própria consciência do agente moral. Assim, o sujeito ético, diria Sócrates, é aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, a essência dos valores morais.

A sabedoria humana de que Sócrates se diz mestre consiste na busca de justificação filosófica (isto é, de um fundamento) da vida moral. Este fundamento consiste na própria natureza ou essência do homem. À diferença dos Sofistas, Sócrates chega a estas conclusões: o homem é a sua alma. E por alma ele entendia a consciência, a personalidade intelectual e moral (REALE; ANTISERI, 2007, p. 91).

Sócrates. O homem e sua Alma (REALE; ANTISERI, 2007, p. 108).

            A moral é a parte culminante da filosofia de Sócrates que ensina a bem pensar para bem viver. “Seu filosofar é ético não apenas porque pretende conhecer o bem, porque através da refutação rechaça as falsas opiniões sobre o bem, mas porque transforma efetivamente a seus interlocutores” (YARZA, 1996, p. 298 – tradução nossa). Não se trata de uma questão meramente teórica, mas uma questão prática, de como agir bem. O que importa para um homem de bem é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida. A virtude adquire-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Para Sócrates, grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância e vício são sinônimos: se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe a justiça.

Já se disse que Sócrates foi o fundador da ciência moral. Com efeito, a ideia com que nos deparamos em diversas ocasiões nos Memoráveis [livro de Xenofonte], sobretudo na terceira parte, é a de que virtude é uma ciência... Por que e como a virtude é uma ciência? Primeiro, sem o conhecimento do bem não se poderia ser virtuoso; assim como não se pode ser bom carpinteiro se não se conhece essa arte... mas, quando se trata do bem, conhecê-lo e praticá-lo são uma só e mesma coisa, uma vez que o interesse prático desse conhecimento é tão grande que é absurdo supor que se conheça o melhor e não se queira fazê-lo (BERGSON, 2005, 102).

 

Intelecutalismo socrático

            A identificação da virtude como conhecimento, ciência, sabedoria, é conhecida como intelectualismo socrático (HOBUSS, 2014; DONINI; FERRARI, 2012; REALE; ANTISERI, 2007):

a virtude é identificada com conhecimento (ciência, sabedoria), o que nos traz o denominado intelectualismo socrático, que entende cada uma das virtudes como formas de conhecimento que levam o indivíduo a entender de que modo devem agir nas diferentes circunstâncias, não qualquer conhecimento, mas um conhecimento enraizado na alma, ou seja, que faz da alma o que ela é (HOBUSS, 2014, p. 86)

            Reali e Antiseri (2007, p. 96) apontam que a tese socrática da virtude como conhecimento implica duas consequências: “1) A virtude (cada uma e todas as virtudes: sabedoria, justiça, fortaleza, temperança) é ciência (conhecimento), e o vício (cada um e todos os vícios) é ignorância. 2) Ninguém peca voluntariamente; quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem”.

            Para Sócrates, o homem, por natureza, procura sempre o bem, mas nem sempre pratica o bem. Todavia, quando pratica o mal, não o faz porque se trate do mal, mas porque espera daí receber algum bem, ainda que esse bem seja em função de um interesse particular. Mas ao agir de tal modo o homem não faz mais do que enganar-se, ou seja, age por ignorância, porque não tem o conhecimento do verdadeiro bem. O conhecimento do bem é necessário para praticar o bem, pois como podemos praticar o bem se não sabemos o que ele é? “Em consequência, para Sócrates, como para quase todos os filósofos gregos, o pecado se reduz a um ‘erro de cálculo’, a um ‘erro de razão’, justamente a ‘ignorância’ do verdadeiro bem” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 96).

            Se virtude é conhecimento, um conhecimento que se atinge de dentro para fora, então ela só pode ser alcançada mediante o máximo conhecimento de nossa realidade interior. A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates e exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. Sócrates tomou como propósito de sua existência aperfeiçoar os homens, esclarecê-los, ensiná-los a darem-se conta do que fazem e essa tarefa tem um caráter religioso: uma voz interior o conduz em seu propósito, o famoso gênio ou daimon socrático, “‘uma voz divina’ que lhe vetava determinadas coisas: ele o interpretava como espécie de sortilégio, que o salvou várias vezes dos perigos ou de experiências negativas” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 100).

            Mas essa virtude, pode ela ser ensinada? Sócrates trata desta questão de modo mais específico nos diálogos Protágoras, Górgias e Ménon. Neste último “Sócrates argumenta, salientando a dificuldade de discutir a questão de se a virtude pode ser ensinada sem desvelar, antes, o que é a virtude (86d), o que o faz discutir hipoteticamente (ex hypothêseos) o caso” (HOBUSS, 2014, p. 87). Eis o que torna difícil a tarefa de ensinar a virtude: para ensinar a virtude é preciso antes conhecê-la, mas quem seriam tais mestres das virtudes? Onde podem ser encontrados? “os mestres da virtude não podem ser encontrados em parte alguma, bem como os seus discípulos, o que torna a possibilidade de ensino da virtude irrealizável (96c, 98e)” (HOBUSS, 2014, p. 88).

 

Disponível em:

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Acesso em:

22/07/2018

 

A ética eudaimonista

            Uma das assunções fundamentais da ética socrática – como boa parte da ética antiga –, é a ideia de que o objetivo da vida humana é a busca da felicidade (eudaimonia), e que esse objetivo só pode ser alcançado mediante um comportamento virtuoso. “Para Sócrates, a felicidade está intimamente ligada à virtude, embora, na realidade, talvez não se possa defender que seja de todo idêntica a ela, como alguns intérpretes chegaram a sustentar” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 82). Sem a prática da virtude não se pode alcançar a felicidade e, por conseguinte, a prática do mal gera a infelicidade.

A felicidade não pode vir das coisas exteriores, do corpo, mas somente da alma, porque esta e só esta é a sua essência. E a alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sócrates: “Para mim, quem é virtuoso, seja homem ou mulher, é feliz, ao passo que o injusto e malvado é infeliz” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 97).

            E essa virtude, esse bem, essa felicidade, correspondem a virtude, o bem e a felicidade da alma (o verdadeiro eu do ser humano), ou seja, a eudaimonia socrática configura-se “como a realização perfeita das potencialidades da alma e, por conseguinte, como ‘virtudes da alma’ (arete tes psyches)” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 83).

Sócrates entende o homem desde sua alma; o homem é sua alma e os valores próprios do homem são os valores de sua alma. Porém, mais além disto, Sócrates entende sua vida desde os valores humanos que a tradição transmite e sua razão reconhece. Desde a verdade do bem a que o homem aspira, o homem compreende a verdade de seu ser. Tal verdade está ligada à virtude e a virtude do conhecimento. Sócrates compreende seu ser desde o bem que vê e vive guiado por ele. Sócrates interpreta sua vida, percebe seu ser, desde o bem conhecido não apenas teoricamente, mas também e sobretudo na prática (YARZA, 1996, p. 298 – tradução nossa).


A Universalidade da Moral

            Finalmente Sócrates acreditava que existe um saber universalmente válido, que decorre do conhecimento da essência humana – contrariamente aos Sofistas, que afirmavam não existir normas e verdades universalmente válidas, isto é, uma concepção relativista da ética.

A reflexão ética de Sócrates pretende que o saber do bem seja universal e objetivo, porém sem anular a múltipla variedade de suas manifestações. Quer dizer, a universalidade do bem, dos valores humanos, não procede do consenso que se lhe preste, senão de sua racionalidade implícita que o diálogo deve fazer emergir (YARZA, 1996, p. 298 – tradução nossa).

            Além disso, é a partir do conhecimento da essência humana que se pode conceber a fundamentação de uma moral universal. O que há de essencial no ser humano é sua alma racional, sua psyché, seu espírito. Por isso, é na sua alma racional e no seu espírito que se deve fundamentar as normas e os costumes morais.

            A universalidade da moral pode ser analisada a partir de Sócrates de como a piedade, por exemplo, é uma virtude que não depende de seja lá quem for, mas que tem uma essência própria. É o que pondera Dinuci (2010, p. 57) ao discorrer sobre o diálogo Eutífron (10a) que trata da piedade e conclui que: “Não há, para Sócrates [...] duas ordens de valores, uma humana e outra divina, mas valores objetivos e universais que são, em última análise, acessíveis àqueles que se empenham no exame de si mesmos e na busca pela definição da virtude” (id., ibidem, p. 59).

 

O aspecto moral do “só sei que nada sei”

            Só sei que nada sei. Eis uma das frases mais conhecidas e talvez a mais pronunciada do filósofo grego que guarda nas suas entrelinhas uma disposição moral digna de reflexão. A pior dar ignorâncias é aquela que acredita saber o que na realidade nada sabe. Concretamente, é fato que se torna muito difícil estabelecer qualquer tipo de diálogo com pessoas que acreditam saber de tudo. Sua opinião é sempre a correta e, antes mesmo que você termine de falar, ela já intervém para expor novamente sua opinião que, ela acredita, é a única verdadeira.

Sócrates é consciente da sua ignorância. Sócrates se encontra em um ponto intermediário entre a ignorância, a impossibilidade de expressar com palavras o que é o bem, e a experiência direta do bem. Não sabe, porque seu saber é intuitivo, capaz de decidir bem sobre o que deve fazer, de comportar-se justamente, porém incapaz de determinar em uma definição o que é o bem [...] (YARZA, 1996, p. 297 – tradução nossa)

            A questão moral por trás desta disposição de espírito é que se as pessoas tivessem mais consciência de sua própria ignorância seriam menos arrogantes e presunçosas, vaidosas e orgulhosas do seu próprio saber, não se acreditando ser mais do que se é. Ademais, a arrogância e a presunção não tornam a convivência entre as pessoas difícil apenas na área pessoal mas também na área profissional. Isto se torna um problema quando eu não tenho condições de aceitar ideias novas, advindas de um subalterno, por achar que ele pode estar simplesmente querendo tomar o meu lugar. Então, ao invés de escutar suas ideias, minha mente fica bloqueada pelo “perigo” que ele pode me causar, caso suas ideias sejam aceitas.

 

Referências Bibliográficas

BERGSON, Henri. Cursos sobre a filosofia antiga. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DINUCI, Aldo. Teologia, Ética e Racionalidade em Sócrates. Anais de Filosofia Clássica, v. 4, n. 7, p. 56-64. 2010. Acesso em: 15 mai. 2022.

DONINI, Pierluigi; FERRARI, Franco. O exercício da razão no mundo clássico: perfil de filosofia antiga. São Paulo: Annablume Clássica, 2012. (Coleção Archai: as origens do pensamento ocidental).

GOBRY, Ivan. Vocabulário grego da filosofia. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

HOBUSS, João F. N. Introdução à História da Filosofia Antiga [on line]. Pelotas: NEPFIL online, 2014.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

PLATÃO. Êutifron, Apologia de Sócrates, Críton. Tradução: José Trindade dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983.

PLATÃO. Diálogos. Fedro-Cartas; O primeiro Alcibíades. Tradução direta do grego: Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2007.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Filosofia Pagã Antiga. Tradução Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007. vol. 1, cap. IV, p. 91-120.

SANTOS, Romualdo Monteiro dos. A virtude socrática como fundamento de uma ética do cuidado de si. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2014.

YARZA, Ignacio. Ética y dialéctica. Sócrates, Platón y Aristóteles. Acta Philosophica, vol. 5, fasc. 2, p. 293-315, 1996. Acesso em 21/07/2018.

 

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