Filosofia, Ética e Sociedade

por Joelma C. dos Santos, Ranessa L. Teixeira

e Nory Lana Godinho de Souza

postado em 2013

atualizado em jun. 2017

versão em Espanhol

            Existe uma profunda ligação entre ética (do grego: εθος – ethos) e filosofia (do grego: Φιλοσοφία): o εθος (ética) nunca pode deixar de ter como fundamento uma concepção filosófica do homem que nos dá uma visão total deste como um ser social e histórico. Dentre os vários conceitos com os quais o εθος trabalha e que pressupõe um prévio esclarecimento filosófico, como os de liberdade, necessidade, valor, consciência, vamos dar ênfase ao de sociabilidade, ou seja, como o εθος deve estar inserido nas relações humanas em sociedade:

            A ação humana é fruto de uma escolha entre o certo e o errado, e entre o que é bom e o que é mal. O indivíduo procura se basear em parâmetros socialmente aceitos que lhe permite conviver com as outras pessoas, em outras palavras, ele busca sempre se guiar pelos conceitos que norteiam a prática dos valores positivos e das qualidades humanas. A ética não somente serve de base para as relações humanas, mas, trata também das relações sociais dos homens na medida em que os Φιλοσοφος (filósofos) consideram a ética como base da justiça ou do direito, e até mesmo das leis que regulam a convivência entre todos que vivem na sociedade - basta lembrar que um dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública no Brasil é o princípio da moralidade, ou seja, os atos da Administração Pública, direta e indireta, devem ser norteados por valores que a sociedade considera como moralmente válidos.

 

A Ética como teoria Filosófica e suas implicações para a vida em Sociedade

            Primeiramente para entendermos sobre o εθος devemos iniciar pelo conceito filosófico. Entender que é a área que investiga o comportamento humano em suas relações entre si, considerando conceitos utilizados para avaliá-las como: valor, virtude, justiça, moral, bem, normas morais, dever, liberdade e responsabilidade; promove também reflexões sobre a busca humana pelas melhores formas de agir, viver e conviver. De forma mais específica, segundo Cotrim (2004, p. 264),

A ética é uma disciplina teórica sobre uma prática humana, que é o comportamento moral... A ética tem também preocupações práticas. Ela orienta-se pelo desejo de unir o saber ao fazer. Como filosofia prática, isto é, disciplina teórica com preocupações práticas, a ética busca aplicar o conhecimento sobre o ser para construir aquilo que deve ser.

            Como θεωρία (teoria) filosófica, o εθος se caracteriza como estudo das ações individuais dos homens, cuja finalidade consiste em elaborar uma orientação normativa para as ações humanas que seja estabelecido como bem. Com o Φιλοσοφος (filósofo) grego Aristóteles o εθος passou a ser a “ciência do moral”, ou seja do caráter e das disposições do espírito. Enfatizamos que o εθος é um conjunto de argumentos que são utilizados pelos indivíduos para justificar suas ações, solucionando com diferentes problemas em que há o conflito de interesses com bases em argumentos universais. Ou salientamos que o εθος é uma Φιλοσοφία responsável por estudar a moral, contestando e identificando o que podemos chamar de regras morais vigentes, as quais são alteradas com o tempo. O εθος como θεωρία (teoria) filosófica tem por objetivo estudar o comportamento dos indivíduos frente aos apelos morais da sociedade em que este vive. Ele se manifesta de diferentes maneiras conforme a cultura, costumes e hábitos de determinadas populações.

            As reflexões da ética abrangem aspectos da vida pública e das leis estabelecidas no plano social para a existência humana. Envolvem questões ligadas ao direito, ao poder, a cidadania e a política (veja a este respeito a seção Ética e Política), e abrange também aspectos da vida privada, analisando algumas questões morais de foro íntimo ligadas as condutas e escolhas de indivíduos em nosso cotidiano, e são elas que determinam o modo como cada um convive consigo próprio e com os outros.

            As respostas filosóficas para as questões éticas variam no tempo e no espaço, e ainda apresentam uma característica fundamental que envolve a posição dos indivíduos em relação ao valor e as virtudes que são defendidos em seu meio cultural. Com isso, os Φιλοσοφος (filósofos) investigam o que leva diferentes grupos sociais a se indagarem sobre questões e valores semelhantes, sem ignorar que, os significados atribuídos a eles nem sempre são os mesmos. Há Φιλοσοφος que concebem o homem como um ser dotado de um senso moral inato, ou seja, da capacidade natural para avaliar como as coisas são e como elas deveriam ser. Alguns acreditam que as diversas tendências culturais e individuais atuam sempre sobre a capacidade comum entre os seres humanos e são determinantes da formação do caráter e da personalidade. E há Φιλοσοφος que afirmam a existência da liberdade, ressaltando sempre que, apesar da pressão de costumes e leis, nós sempre podemos refletir sobre as questões éticas e sobre a moral aprendida, e que, segundo eles, há uma possibilidade que nos faz responsáveis por nossas próprias escolhas e que nos permite contribuir para a renovação com as normas com que nos deparamos no dia a dia. Vejamos agora, em breves linhas, alguns posicionamentos filosóficos de pensadores consagrados ao longo da História da Filosofia.

            Nos tempos áureos da Φιλοσοφία grega todas as virtudes eram políticas e sociais, o que denota uma certa inseparabilidade entre a ética e política, ou seja, não havia separação entre ética e política senão no campo conceitual e estavam relacionadas a conduta do indivíduo e os valores da sociedade.

            No pensamento dos Antigos filósofos a existência humana só pode ser pensada em sociedade onde os seres humanos aspiram ao bem e a felicidade, que só pode ser alcançada pela conduta virtuosa. Além disso, existe uma preocupação constante com a busca dos valores morais inscritos no interior do próprio homem, como acreditava Sócrates. Dessa forma – para ser ético – o homem deveria entrar em contato com a sua própria essência, a fim de alcançar a perfeição. O homem, como qualquer ser, busca a sua perfeição, que acontecerá quando sua essência estiver plenamente realizada.  E como afirma Mondin (1980, p.91), “A ética ou moral... é o estudo da atividade humana com relação a seu fim último que é a realização plena da humanidade”.

            Sócrates, que se tornou símbolo da própria Φιλοσοφία, dedicou atenção especial as questões éticas, sendo que ele julgava o ser humano que era dotado de uma natureza racional e voltada para o bem. Ele tentava sempre compreender a essência das virtudes e do bem, tal como a justiça, a prudência, a coragem, e entre outras. Sócrates de alguma forma procurava saber dos cidadãos atenienses sobre a virtude, a essência, saber se uma conduta é boa ou não, e porque o bem é uma virtude e o mal um erro, e com tudo isso as perguntas ética-socráticas não estão destinadas somente ao indivíduo, mas também a sociedade.

            Pode-se resumir a ética dos antigos em pelo menos dois aspectos: o agir em conformidade com a razão e a união permanente entre ética (a conduta do indivíduo) e política (valores da sociedade). A ética é uma maneira de educar o sujeito moral (seu caráter) no intuito de propiciar a harmonia entre o mesmo e os valores coletivos.

            Na Idade Média a Φιλοσοφία sofrerá uma forte influência da tradição cristã. Uma vez, que todos os Φιλοσοφος deste período são teólogos, bispos, abades e padres. Dessa forma a Φιλοσοφία permanecerá, ao longo de todo período medieval, subordinada a teologia, de tal modo, que é impossível separar o pensamento filosófico da tradição grega, do pensamento teológico cristão. Neste caso a vida ética era definida por sua relação espiritual e interior com Deus e pela caridade com o seu próximo, por meio da revelação divina. A ética cristã se fundamenta no amor, no qual foi colocado como primeiro e maior mandamento: o amor a Deus acima de todas as coisas e o amor ao próximo. É no amor que o cristianismo encontra sua realização espiritual mais profunda e as bases fundamentais para a vida em sociedade.

            Os primeiros Φιλοσοφος cristãos procuravam conciliar fé e razão como instrumento de análise e reflexão. A partir desse pressuposto a Φιλοσοφία insurge no campo da ética cristã, como tentativa de justificar seus princípios e normas de comportamento, se submetendo a lei divina revelada pelas Sagradas Escrituras implicando uma determinação racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplina específica, a teologia dogmática (veja mais em: Filosofia Cristã: Interioridade e Dever).

            Assim como Sócrates e Platão, o bispo, teólogo e filósofo do início da Idade Média, Santo Agostinho, foi um homem profundamente voltado para a sua interioridade, uma vez que é nessa interioridade que podemos realizar nosso encontro com Deus e nossa verdadeira essência. É dentro desta perspectiva de uma Φιλοσοφία introspectiva que Agostinho agrega uma série de conceitos fundamentais. Os Φιλοσοφος medievais herdaram elementos da tradição filosófica grega, reconfigurando-se no interior de uma ética cristã e tal como Santo Agostinho, a Φιλοσοφία de São Tomás de Aquino representa uma aproximação entre fé e razão mas, neste caso, usando o pensamento aristotélico como base fundamental. Inspirado na filosofia aristotélica e amparado na visão cristã de mundo, Aquino reflete sobre a conduta ética que é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar, referindo-se, ao que é possível e desejável para um ser humano. A ética tomista também deve ser trabalhada no âmbito da sociedade. Analisando a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e, portanto, forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do gênero humano; a segunda forma é o Estado, de que depende o bem comum dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, se compreende como o indivíduo não é um meio para o Estado, mas o Estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás de Aquino, o Estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material (econômica), mas também positiva (organizadora) e espiritual (moral). Embora o Estado seja completo em seu gênero, fica, porém, subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como escopo o bem eterno das almas, ao passo que o Estado tem apenas como escopo o bem temporal dos indivíduos.

            Mas não foi apenas na antiguidade e na Idade Média que os Φιλοσοφος tiveram essa preocupação ética e social. Longe de pretender fazer uma análise sistemática das mais diferentes visões filosóficas sobre o assunto vamos apenas ressaltar as duas correntes que já mencionamos no início do texto. A primeira sobre a qual já falamos, corresponde às ideias de Φιλοσοφος como Sócrates e Santo Agostinho que acreditam que o ser humano é dotado de um senso moral inato, ou seja, da capacidade natural para avaliar como as coisas e como elas deveriam ser e, desta forma, a questão de como devemos nos comportar e agir em sociedade passa por uma questão de foro íntimo e espiritual, introspectivo, que pode ser resumida na frase: “conhece-te a ti mesmo”. Mas essa visão não é a única e Φιλοσοφος há que acreditam que que as diversas tendências culturais são determinantes da formação do caráter e da personalidade e por isso dão uma ênfase maior em como os aspectos sociais e culturais são determinantes das relações humanas.

            Um exemplo desta perspectiva nós encontramos no século XIX, com o filósofo alemão Friedrich Hegel, que aprofundou de maneira ímpar a perspectiva Homem – Cultura e História, sendo que a ética deve ser determinada pelas relações sociais. Como sujeitos históricos culturais, nossas ações devem ser determinadas pela harmonia entre vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural. O homem é visto como sujeito histórico-social, e como tal sua ação não pode mais ser analisada fora da coletividade, por isso a ética ganha um dimensionamento político: uma ação eticamente boa é politicamente boa, e contribui para o aumento da justiça e distribuição igualitária do poder entre os homens. O ideal ético para Hegel estava numa vida livre dentro de um Estado livre, um Estado de direito, que preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem separadas e nem em contradição. E os grandes problemas éticos se encontram em três momentos da eticidade que são a família, a sociedade civil e o Estado, e uma ética concreta não pode ignorá-los (VALLS, 1994).

            Em relação à sociedade civil os problemas atuais continuam os mais urgentes: referem-se ao trabalho e à propriedade. Não é um problema ético a falta de trabalho, o desemprego, as formas escravizadoras do trabalho, quando a maioria não recebe as condições mínimas nem de salário nem de infra estrutura para sobreviver? Em relação ao Estado, os problemas, éticos são muito ricos e complexos. A liberdade do indivíduo só se completa como liberdade do cidadão de um Estado livre e de direito. As leis, a Constituição, as declarações de direitos, a definição dos poderes, a divisão destes poderes para evitar abusos, e a própria prática das eleições periódicas aparecem hoje como questões éticas fundamentais.

            Uma outra perspectiva de uma moral social encontramos no sociólogo Émile Durkheim. A comparação que Durkheim faz da sociedade com um organismo biológico traz ricas analogias. A sociedade é um imenso corpo social, como um “organismo biológico” (o conjunto das instituições sociais formam este corpo), possuindo vários órgãos (entre eles: a família, o Estado, a escola, a Igreja), cada qual com suas funções específicas de modo que a “anatomia social” será saudável se todos os órgãos funcionarem bem. Durkheim leva essa analogia ainda mais além quando afirma que a partir do momento em que um desses órgãos deixa de funcionar convenientemente, todo corpo social se ressente e adoece. E o que torna saudável uma sociedade, fazendo com que ela funcione harmoniosamente, é a existência de uma moral social. Cabe aos indivíduos desenvolver planos de ação que possam influir na transformação dos aspectos deficientes da sociedade a partir de valores que possam orientar, efetivamente, a conduta social dos indivíduos. Vale destacar aqui, a importância que a ideia de solidariedade representa no pensamento do sociólogo francês. A solidariedade, dentro do contexto das regras morais e sociais, pode e deve contribuir para a harmonia da sociedade.

            Enfim, qual a contribuição que a Φιλοσοφία e, por sua vez, a Ética, podem oferecer para nós, homens e mulheres do século XXI? No momento histórico em que vivemos existe um problema ético-político grave. O Brasil sempre quis ser visto o país dos justos, da democracia, da ética acima de tudo, porém não é bem essa a realidade vivida por todos (veja mais em: Ética na democracia brasileira). Verifica-se uma realidade conflitante fundamentada em uma crise de sentido e de valores que se apresenta na vida pessoal e nas relações sociais das pessoas. A partir desse contexto percebe-se uma inquietação acerca do sentido da vida e do papel do “ser no mundo”, vindo assim a reaparecer com mais força o interesse pelo tema da ética, enquanto coluna vertebral da reflexão sobre a conduta do ser humano e seus valores. Não é suficiente para o homem comum e contemporâneo superar a crise da ética atual conhecendo o outro e suas necessidades para se chegar a sua convivência harmônica. Não há como superar esta crise sem um modelo de ética voltada para uma comunidade, como na polis grega. Hoje se aposta no individualismo, na competição, na sociedade do espetáculo e do consumo.

            Acerca das reflexões sobre o ponto de vista dos Φιλοσοφος, fica claro o entendimento sobre a ética, sendo um elemento imprescindível na sociedade. Somos formados por princípios e valores que estão relacionados a nossa cultura e esses fatores são essenciais, para a formação do nosso caráter no que diz respeito a nossa conduta ética e moral de modo que, irremediavelmente, o que se entende por Φιλοσοφία e Ética está relacionado ao conhecimento e comportamento do indivíduo na sociedade.

 

Referências Bibliográficas

COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva 2004.

MONDIN, B. Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. Tradução de J. Renard. São Paulo: Paulus, 1980.

VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Coleção Primeiros Passos, 177). Em nosso website você encontra uma resenha da obra de Álvaro Valls: acesse o link: O que é Ética (resenha).

 

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