Foucault e a medicina social como estratégia biopolítica

por Paulo Cesar Vieira Archanjo

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postado em jan. 2017

            O francês Michel Foucault elaborou argumentos consistentes acerca do papel da medicina social na subjetivação humana. O conceito de subjetivação estabelece uma forma de compreender, posicionar e agir, a partir de suas diferentes racionalidades e sensibilidades, sobre as expectativas, visões de mundo, as práticas e as posições das pessoas que vivem esta situação. Para Foucault (1984, 1995), modos de subjetivação dizem respeito à constituição dos sujeitos. Este breve artigo busca evidenciar a contribuição da medicina social como estratégia biopolítica, na constituição dos sujeitos em campos como: a higiene e a moral.

            A medicina social, ratificada pelo saber científico, operava em toda população, atuando sobre as sensibilidades das pessoas, alterando valores assépticos, buscando produzir uma identidade sanitária. A medicina operava sobre a produção de novas maneiras de agir e pensar (FOUCAULT, 1979).

            Mais do que curar doentes, a medicina social, para Foucault, se converte, a partir do século XVIII, em instrumento de normatização, governando a vida das pessoas, invadindo espaços antes interditos da sociedade. As casas, espaços por excelência privados, sofrem a irrupção das vigilâncias sanitárias e sua cartilha do “bem viver”. Saberes da medicina social passam a reverberar como produção da verdade (FOUCAULT, 1979, 2005).

            Os médicos passam a ser os higienizadores da sociedade. Bem como os arquitetos, a medicina também é convocada para participar do planejamento urbano e, paulatinamente, vai ganhando cada vez mais espaço entre os tomadores de decisões, outorgando poderes pela via do saber para intrometer-se no espaço mais privado possível (FOUCAULT, 1979, 1998, 2005).

            Os conhecimentos tradicionais, perseguidos desde a época da colonização no Brasil, recebem uma avassaladora investida do prepotente conhecimento científico que revestia o saber médico-sanitarista. Imbuído de uma suposta neutralidade axiológica, ambicionavam controlar o modo de vida das pessoas em nome da salubridade urbana. Para Herschmann (1994, p. 41), o objetivo desta medicina normatizadora era “secularizar os costumes” com a intenção de formar uma sociedade hígida e civilizada. Assim, medicalizar a sociedade era civilizá-la.

            Medicalização foi um termo utilizado por Foucault (1979, 2005) para enfatizar a influência da medicina em quase todos os aspectos da vida. A medicina produz efeitos de controle na cotidianidade das pessoas, por via de seus estatutos científicos sobre doença e saúde, normalidade e patologia. A medicina social surge como reguladora da higiene pública com vistas à salubridade da cidade, mas seu alcance é bem maior que o preventivo/curativo. Foucault conceituou medicalização da seguinte forma:

La medicalización, es decir, el hecho de que la existencia, la conducta, el comportamiento, el cuerpo humano, se incorporaran apartir del siglo XVIII en una red de medicalización cada vez más densa y amplia, que cuanto más funciona menos se escapa a la medicina (FOUCAULT, 1977, p. 3).

            Medicalizar é converter em objeto da medicina e do médico, não só corpo, mas as condutas humanas, a maneira de se vestir, o que se come e como se come, a maneira de construir e limpar suas casas, enfim são mecanismos que normatizam a maneira de viver das pessoas e das populações.

          Quando se fala em normatização do sujeito e das populações, a medicalização teve um papel relevante neste processo. Foucault (1992) sustenta que para haver relações de poder é preciso que haja produção, acumulação e circulação de saberes. A produção e transmissão da verdade são efeitos, assim, dessas relações de poder. E esse efeito da verdade vai se reproduzindo em todos os espaços.

            A medicina, em sua nova configuração a partir do século XVIII, vai além do objetivo de curar doenças, ela abraça uma atitude normativa, mas não somente aconselhando as pessoas sobre a necessidade de uma vida saudável, como também se achando no direito de intervir na vida física e moral do indivíduo e da população. Desse modo ou dessa maneira, a medicina se faz social, estatuto este forjado pelo saber/poder (FOUCAULT, 1980). Em seu livro “Danação da Norma: medicina social e constituição da medicina no Brasil”, Machado (1978), assegura que a medicalização é uma tecnologia de poder imbuída de criar uma sociedade sadia, sendo seu objeto a “[...]transformação de desviantes [...] em seres normalizados” (1978, p. 156).

         Este saber/poder da medicina possibilitava-a intervir no cotidiano das pessoas, controlando e afetando suas autonomias, que ficam cada vez mais na dependência de normas, as quais estabeleciam comportamentos aceitáveis ou normais.

            A medicina interfere em campos distintos da saúde como, por exemplo: a construção de casas, limpeza de terreno, regulações sobre a água e odores. A medicina estava presente em várias instâncias do poder e, em todas elas, há em certa medida, influxo sobre as condutas das pessoas.

            Medicalização, assim, possui uma função política de intervenção sem limites em várias esferas da sociedade. A cidade, os bairros, as famílias são instâncias que, a partir do século XVIII, estavam sujeitas ao controle da medicina social, mecanismo este de assujeitamento por excelência, processos estes que recaíam sobre multiplicidades de corpos.

            Medicalização é uma estratégia biopolítica, poder que é exercido sobre o coletivo e atuando sobre a constituição do sujeito. Não é o corpo somente que deve ser disciplinado, mas o controle deve recair também sobre a “[...] vida dos homens, [...], ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, ao homem-espécie” (FOUCAULT, 2005, p. 289).

            Enquanto o poder disciplinar predomina sobre os corpos individualizados, centrando-se no corpo como máquina, a biopolítica objetiva controlar o corpo social. Resulta deste último o controle e regulação do número de óbitos e nascimento, saúde, longevidade, entre outros. Constituindo, deste modo, uma biopolítica da população. Dessa forma, o poder sobre a vida é formado por estes dois polos: disciplina sobre o corpos e regulação da população (FOUCAULT, 1998, p. 131).

            O poder moderno, para Foucault, constitui-se desses dois polos: disciplinar (individualizante) e outro baseado na normalização da população (totalizante). São direções distintas, porém complementares, pois ambos os eixos fazem parte do biopoder.

            Biopoder é a estatização da vida biológica das pessoas, exercendo poder de forma positiva com a finalidade de torna-la útil (FOUCAULT, 1998). Nas palavras de Foucault, “[...]estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanta da vida, ou que se incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral, com o polo do corpo e o polo da população” (FOUCAULT, 2005, p. 302).

            Assim, o biopoder apresentou-se como ferramenta indispensável para o desenvolvimento do capitalismo, pois atuava sobre o controle dos corpos no aparelho de produção e regulação da população nos aspectos econômicos. O capitalismo intentava docilizar, tornar úteis os corpos e para conseguir isto foram utilizadas estratégias “[...] capaz de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isso torná-la mais difícil de sujeitar” (FOUCAULT, 1998, p. 132).

            Para este fim (assujeitamento) são produzidas técnicas de poder (disciplinar unitária – biopolítica totalizante), a partir do século XVIII, estando presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições, como a medicina individual e social (FOUCAULT, 1998).

          A medicina social, neste sentido, pode ser compreendida como técnica de poder que age sobre a população normatizando condutas. Tais normatizações tiveram efeito de produzir uma cartilha do bem viver, encarregada de promover não somente a saúde, mas também a moral. Assim a medicina curativa e social converte-se em um pujante dispositivo de poder que age na formação dos sujeitos, servindo aos desígnios do processo civilizatório burguês e com ele os preceitos higienizadores, contribuindo com a normalização da sociedade.

 

Referencias Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade – Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

____. História da sexualidade 1. A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Guilhon Albuquerque. Revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1998.

____. Historia de la medicalización. Segunda conferencia dictada en el curso de medicina social que tuvo lugar en octubre de 1974 en el Instituto de Medicina Social, Centro Biomédico, de la Universidad Estatal de Río de Janeiro, Brasil. Revista Educación médica y salud, v. 11, n. 1, 1977.

____. Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1979.

____. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 3. ed. Tradução de Ligia M. Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1984.

____. Genealogía del racismo. Madrid, ES: La Piqueta, 1992.

____. O Sujeito e o Poder. In.: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e a hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

HERSCHMANN, Micael M. PEREIRA, Carlos A. Messeder. A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20 – 30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MACHADO, Roberto (et. al.) Danação da Norma: medicina social e constituição da medicina no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

 

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