Indústria Cultural

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em dez. 2018

            Indústria cultural (em alemão: Kulturindustrie) é um termo cunhado pelos filósofos e sociólogos alemãos Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), membros da Escola de Frankfurt. O termo aparece no capítulo Kulturindustrie - Aufklärung als Massenbetrug (Indústria Cultural – o Esclarecimento como mistificação das massas) na obra Dialektik der Aufklarung (Dialética do Esclarecimento), de 1947 (HORKHEIMER; ADORNO, 1985 – ver também: (HORKHEIMER; ADORNO, 2002), e designa a situação da cultura na sociedade capitalista industrial.

            Horkheimer e Adorno elaboraram o conceito de indústria cultural identificando a exploração comercial e a vulgarização da cultura por parte de empresas e instituições que trabalham com formas de produção da cultura  visando o lucro, ou seja, indústrias interessadas na produção em massa de bens culturais para fins mercadológicos: “a proposta do sistema é de que a humanidade inteira se torne cliente ou empregado da indústria” (LOSSO, 2005, p. 163). A indústria cultural também consiste no uso dos meios de comunicação que se apropriam da cultura, direcionando-a para o consumo, ocorrendo a mercantilização da cultura.

            Há que se fazer uma breve observação sobre o termo indústria, que não deve ser entendida em sentido literal, mas como um processo social que transforma a cultura em bem de consumo ou que “designa basicamente o conjunto das relações sociais que os homens entretém com a cultura no capitalismo avançado” (RÜDIGER, 1998, p. 18).

Na indústria cultural, “não se deve tomar de maneira literal o termo indústria”. O fenômeno não se define pela sua base tecnológica. O vocábulo em destaque refere-se sobretudo ao manejo das técnicas de distribuição (difusão e venda) e à padronização da estrutura dos bens simbólicos (“estandardização da própria coisa”) (RÜDIGER, 1998, p. 18).

            Segundo Horkheinner e Adorno, as práticas e valores culturais da modernidade estariam ligados à mercadologia da indústria cultural e o capitalismo adicionou a cultura ao campo da economia e da administração, constituindo uma sociedade baseada em corporações transnacionais e blocos político-econômicos. A sociedade capitalista industrial estabeleceu uma relação mercantil com a cultura e a arte. Em certo sentido essa análise pode ser entendida “como uma ampliação da análise marxista do fetichismo da mercadoria a esfera dos fenômenos culturais” (RÜDIGER, 1998, p. 17). Assim como a cultura, a arte

é um tipo de mercadoria, preparado, inserido, assimilado à produção industrial, adquirível e fungível, mas o gênero de mercadoria arte, que vivia do fato de ser vendida, e de, entretanto, ser invendável, torna-se – hipocritamente – o absolutamente invendável quando o lucro não é mais só a sua intenção, mas o seu princípio exclusivo (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 36-37).

            Para Adorno e Horkheimer a arte perde o seu valor estético e se torna um objeto de interesse coletivo destinado à venda. Freitag (2004, p. 73) reforça a crítica da obra de arte como produto mercadológico:

Numa sociedade em que todas as relações sociais são mediatizadas pela mercadoria, também a obra de arte, ideias, valores espirituais se transformam em mercadoria, relacionando entre si artistas, pensadores, moralistas através do valor de troca do produto. Este deixa de ter o caráter único, singular, deixa de ser a expressão da genialidade, do sofrimento, da angústia de um produtor (artista, poeta, escritor) para ser um bem de consumo coletivo, destinado, desde o início, à venda, sendo avaliado segundo sua lucratividade ou aceitação de mercado e não pelo seu valor estético, filosófico, literário intrínseco.

            O tema da indústria cultural pode aparecer vinculado com a ideia de economia de mercado e capitalismo, bem como com os meios de comunicação de massa e cultura de massa. A economia de mercado da sociedade capitalista é baseada estritamente no consumo de bens (sociedade do consumo) e é através dos meios de comunicação de massa (capaz de atingir um grande número de indivíduos, ou melhor, consumidores), através da publicidade e da propaganda, que se passa a ideia de que a felicidade está ao alcance de nossas mãos, por meio da compra de alguma mercadoria: um calçado, uma roupa, um comportamento, um carro, uma bebida, um estilo etc. Nesse contexto, a própria cultura se transforma em mercadoria. A indústria cultural se apropria de elementos da cultura e, através de um processo de sedução e convencimento, vende ao público como mercadoria.

            A indústria cultural fabrica produtos cuja finalidade é o seu valor de mercado, que possa ser consumido e transformado em capital. A cultura é objetificada, feita em série, industrialmente, para as massas e ao invés de ser vista como instrumento de livre expressão é vista como produto, que deve ser consumida, como qualquer produto no mercado. Não só a cultura é objetificada como o próprio ser humano se transforma em objeto:

A indústria se interessa pelos homens apenas como pelos próprios clientes e empregados, e reduziu, efetivamente, a humanidade no seu conjunto, como cada um dos seus elementos, a esta forma exaustiva [...] Em qualquer dos casos [como empregados ou como clientes] permanecem objetos (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 27).

            Atribui-se a Adorno o entendimento de que a prática da indústria cultural realiza um trabalho ideológico de lavagem cerebral nas massas e, assim, as mantém num estado de falsa consciência. Por isso, a crítica à indústria cultural objetiva decifrar as contradições sociais e problemas do homem moderno, representando proposições históricas e filosóficas que podem servir de embasamento para uma ciência social crítica sobre a cultura. O discurso crítico sobre a indústria cultural é, assim, um discurso contra a manipulação dos meios de comunicação de massa que objetiva manipular os indivíduos transformando-os em meros consumidores. Um discurso crítico sobre a crescente e aparentemente inevitável mercantilização de todos os domínios da experiência humana, de objetificação do sujeito, reificação (transformação em coisa) e fetichização (culto) da mercadoria.

Os estudos de crítica à indústria cultural procuram examinar como a sociedade se expressa através das suas várias mídias. O programa desses estudos se centra nos processos através dos quais a produção e a recepção são mediadas em conjunto pelas comunicações enquanto mercadorias, as quais as pessoas estão dispostas a pagar direta ou indiretamente (SOARES, 2005 p. 232-233).

 

Indústria Cultural e Comunicação de Massa

            A invenção da imprensa por Gutemberg no século XV marca o surgimento dos meios de comunicação. A máquina impressora de Gutemberg, que consistia na aplicação de tinta sobre um bloco e a compressão do papel contra ele, viabilizou a disseminação de conteúdos gráficos por toda a Europa. Desde então os meios de comunicação vem se transformando e alcançando um número cada vez maior de leitores, ouvintes, espectadores. No contexto de crítica da Indústria Cultural empreendido por Adorno e Horkheimer, merecem destaque os jornais, revistas, o rádio, o cinema e a televisão.

            Nesse contexto a cultura de massa passa a ser entendida como a cultura veiculada pelos meios de comunicação de massa, sendo direcionadas e produzidas para o consumo das massas, ou ainda, por toda a sociedade, que assume uma postura passiva sendo influenciados em seu processo de escolha e decisão.

            Veículos de comunicação de massa como o rádio e  a propaganda foram criticados de forma veemente por Adorno e Horkheimer, principalmente por causa da forma como foram explorados na década de 1920 e 1930 por Adolf Hitler e Benito Mussolini, como estratégia de mobilização de massas. Nesse sentido se pode dizer que a crítica da Indústria Cultural tem como interlocutor privilegiado o nazismo e o fascismo. No primeiro caso, tem-se uma competente política de comunicação desenvolvida por Goebels, ministro da Propaganda do governo nazista. Na década de 1930, o Partido Nacional Nazista passou a influenciar de forma decisiva na nomeação dos diretores de rádios que, na Europa, haviam sido criados como um sistema público controlado pelo Estado. Essa influência do nazismo fica explicitado a partir da ideia de que o rádio é a voz do Führer: “Daí o rádio se tornar a boca universal do Führer; e a sua voz, nos altofalantes das estradas, vai além do ulular das sirenes anunciadoras de pânico, do qual a propaganda moderna dificilmente pode-se distinguir” (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 37).

            O nazismo, como o fascismo, era plenamente consciente da eficácia do rádio. Adorno e Horkheimer presenciaram diretamente o modo como o nazismo utilizou o rádio como estratégia de mobilização. Uma estratégia já desenvolvida por Mussolini na Itália que, em 1922, criou o Cineccittà: um empresa de filmes do Estado italiano. Essa experiência foi amplamente utilizada pelos nazistas. Nazistas e fascistas perceberam, rapidamente, o grande potencial de mobilização das massas através do cinema e do rádio.

Disponível em: 150 Storia d'Italia. Acesso em: 21 dez. 2018

            Sob outra perspectiva, a Indústria Cultural também se volta para a sociedade de massa americana e sua cultura. Há uma diferença entre uma Indústria Cultural que surge a partir do Estado na Europa e aquela que advém do modelo americano das empresas, das indústrias e do comércio. Adorno e Horkheimer se volta também para a sociedade americana e anunciam a decadência cultural do Ocidente – uma perspectiva bastante pessimista –, depois do surgimento dos meios de comunicação de massa.

 

Indústria Cultural na Era Digital

            Se há 50 anos atrás a televisão aberta produzia programas com o principal objetivo de manter o olhar da audiência colado à tela, de modo que, quanto maior a audiência, maior o valor de venda dos espaços de propaganda, hoje a cultura digital tem substituído esse papel que antes era dominante da televisão:

A nova rede global digital tem a mesma intenção, e opera com os mesmos fins, mas a novidade é que agora ela tem conhecimento, a partir dos Big Data fornecidos pelos próprios usuários, dos seus perfis, preferências, gostos e desejos. Assim, desenvolve-se o chamado microtargeting, uma propaganda dirigida a um alvo específico, uma visada precisa do anúncio publicitário em relação às características dos usuários (ANTUNES; MAIA, 2018, p. 195).

            Por isso o século XXI exige um certo cuidado no uso do ambiente digital no mesmo sentido da crítica Indústria Cultural do século XX. Esse cuidado “é desejável na medida em que preserva o sujeito de ser lançado no turbilhão da aceleração da circulação de dados, mas não há um lugar completamente protegido do alcance dessa nova ordem cultural” (ANTUNES; MAIA, 2018, p. 196).

 

 

Considerações Finais

            Com base nestes breves apontamentos sobre a Indústria Cultural e apesar da perspectiva bastante pessimista de seus principais críticos, não devemos condenar, de modo irrestrito, o uso dos meios de comunicação de massa, sob a alegação de que, apesar de ser uma prática do entretenimento, da diversão, do prazer, alienam e objetificam.

            O uso dos meios de comunicação de massa pode ser visto como algo positivo para a sociedade. Todavia, é necessário fazer uma análise crítica. Se por um lado os meios de comunicação de massa possibilitaram, graças à reprodução em larga escala, a disseminação de obras acessíveis a um número maior de pessoas, fazendo com que a arte não esteja restrita a uma classe, não é menos verdade que é necessário discutir as implicações dos fenômenos da comunicação no contexto atual.

            Analisar de forma crítica como a economia de mercado, por meio da indústria cultural, tende a coisificar a cultura e o próprio homem. De criticar como, para a indústria cultural, o padrão de avaliação deve ser a mercadoria, como coisa, objetificação, reificação, o produto, onde tudo é julgado como coisa, inclusive o homem.

            Além disso precisamos considerar a questão do entretenimento, não necessariamente como um fator negativo na sociedade, na verdade o lazer é algo necessário ao ser humano. Mas dentro de um contexto mercadológico e consumidor, onde a produção artística e cultural são subservientes ao mercado, adquire um aspecto negativo, de mercantilização.

            É importante também aprender com os exemplos do nazismo e do fascismo, não para copiá-los, mas porque ao ensinar como se pode mobilizar uma sociedade para o autoritarismo, podemos pensar igualmente no seu reverso, ou seja, como mobilizar para a libertação, a criatividade e a emancipação.

            Há ainda uma série de outras questões relevantes que permanecem em aberto e que exigem uma reflexão e análise crítica, tais como: os produtos da indústria cultural são bons ou maus para o homem, adequados ou não ao desenvolvimento das potencialidades e projetos humanos? Quem manipula quem? É o público que manipula a televisão ou é a televisão que manipula o público?

 

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Deborah Cristina; MAIA, Ari Fernando. Big Data, exploração ubíqua e propaganda dirigida: novas facetas da indústria cultural. Psicologia USP, v. 29, n. 2, p. 189-199, 2018. Acesso em: 19 jun. 2019.

FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 2004.

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. A Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas. In: ____. Dialétíca do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. O iluminismo como mistificação das massas. In: ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 5-44.

LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. Resenha de Teoria Crítica e Indústria Cultural de Rodrigo Duarte. Alea – Estudos Neolatinos, vol. 7, n. 1, p. 161-166, jan./jun., 2005. Acesso em 26/10/2018.

RÜDIGER, Francisco. A Escola de Frankfurt e a trajetória da crítica à indústria cultural. Estudos de Sociologia, vol. 3, n. 4, p. 17-29, 1998. Acesso em 26/10/2018.

SOARES, Mariana Baierle. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural – comunicação e teoria crítica da sociedade (Resenha). Comunicação e Política, vol. 23, n. 2, p. 229-233, mai./ago., 2005.

 

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