Interpretação ética e religiosa de A Alegoria da Caverna

texto publicado com a colaboração de

Edelyn de Lima Andrade

Ingrid Caroline A. Piedade

acadêmicas de Serviço Social da UFAM

postado em abr. 2016

 

            A Alegoria da Caverna (para conhecer em detalhes esta história acesse o link: O Mito da Caverna) simboliza o esforço que é preciso empreender para atingir o conhecimento, um árduo labor filosófico (libertar-se dos grilhões da ignorância) que luta para superar as dificuldades de transição das trevas para a luz. A ruptura dos grilhões, com efeito, não é um processo fácil, mas um progressivo e lento trabalho de adaptação dos olhos (da alma) à claridade. É todo um processo de purificação da alma que é exigido do aspirante à sabedoria para que possa exercer sua plena capacidade de ver a realidade tal como ela é e não apenas como ela se apresenta. É também um processo de busca da verdade em torno do qual não se pode pular etapas para se chegar à última fase do processo de conhecimento. Com efeito, a filosofia platônica é uma filosofia comprometida com o conhecimento da verdade (RIBEIRO, 2005) na qual é necessário um esforço e empenho deliberado e consciente de cada indivíduo. A contemplação da verdade é movimento da alma, é dynamis, rumo à luz do conhecimento, rumo ao Bem que existe em si e por si mesmo e não é passível nem de aumento ou diminuição. Esse processo que culmina com a contemplação do Bem Absoluto pode, com efeito, ser analisado tanto do ponto de vista da ética quanto do ponto de vista religioso: o Bem como a Verdade divina e absoluta, o Bem como Ideia em torno do qual o sábio deve pautar todas as suas ações e conduta virtuosa.

            O processo de ascensão, purificação e catarse espiritual e moral está descrito de forma simbólica na Alegoria da Caverna. Nesta Alegoria Platão descreve a condição humana de prisioneira ao mundo das ilusões e que deve se libertar das amarras de sua própria ignorância para alcançar a plenitude do conhecimento verdadeiro. Uma ascese intelectual que “[...] nos conduz à verdade, à ideia de ‘Bem’. Uma vez que tenhamos contemplado a ideia de ‘Bem’, seria impossível agir de forma errada” (FERRAZ, 2014, p. 37). É necessário sair da ignorância do mundo ilusório para contemplar o conhecimento das Ideias, das essências, da verdade, do Bem, fazendo com que a humanidade obtenha princípios éticos e viva em harmonia dentro da sociedade.

            A realidade interna da caverna representa o mundo sensível perceptível pelos nossos sentidos: o mundo da multiplicidade, do movimento ilusório, de sombras, cópia do verdadeiro mundo. Acima dele está o mundo das Ideias e das essências imutáveis que só pode ser atingido através da contemplação e da depuração das ilusões dos sentidos (ARANHA,1998, p.85).

O que acompanhamos na saída desse sujeito, que rompe os grilhões e sai da caverna, é uma ascensão rumo à contemplação do mundo inteligível, “mundo das ideias”, das “formas”. O elemento derradeiro nesse processo de ascensão é a ideia de “Bem”, o qual a alma aprende a ver com muito esforço intelectual. E, ao contemplá-lo, ela o reconhece como condição de possibilidade de tudo o que há, do belo e do justo, de tal forma que a ação racional envolve, necessariamente, o ter contemplado (FERRAZ, 2014, p. 36).

            Ademais para Platão é preciso ir além do relativismo dos valores morais da existência humana, se libertar das correntes (ignorância), onde ao sair da escuridão se depara com uma outra realidade: uma realidade de valores imutáveis, perfeitos e eternos, como a Ideia de Bem, de Verdade, de Justiça. E ao voltar para a caverna é preciso compartilhar suas experiências vividas no exterior da caverna, sendo que não é levado a sério e ainda é dado como louco, pois só pode transmitir seus conhecimentos através de seus relatos pessoais.

            A razão aqui desempenha um papel fundamental na visão de Platão, pois é o único meio de alcançar os valores verdadeiros a serem seguidos pelos homens. No mito da caverna o filósofo expõe a condição de ignorância do homem que deve se libertar das ilusões do sentido para encontrar o mundo das Ideias. Algo que só é possível através do conhecimento racional e isto se dá através do método da dialética onde o filósofo tende a libertar os homens da ignorância e levá-los ao conhecimento da Ideia, até alcançar o conhecimento da Ideia Suprema: o Bem Absoluto (para um melhor entendimento sobre a Teoria das Ideias de Platão e a dialética veja mais a respeito no link: A Teoria das Ideias).

            Para Platão é o Bem que ilumina o ser com a verdade, permitindo que seja conhecido, assim como Sol ilumina os objetos e permite que sejam vistos. Essa relação é apresentada na alegoria da caverna entre o Bem e o Sol, onde “o sol é a representação do verdadeiro conhecimento que está ligado ao bem” (FEITOSA, 2006, p. 109) e onde o homem ao comtemplar a ideia do Bem, deve agir de acordo com a razão pois passa a sofrer exigências do Ser e suas ações devem seguir a ideia contemplada. “A mesma coisa se dá com relação as virtudes, em que cada uma deve promover o bem [...] O Livro VII constrói esta base para mostrar que as virtudes são fundamentais para a construção de um todo harmônico” (FEITOSA, 2006, p. 109). Desta forma o Bem é o ponto central da ética e da religião platônica.

Ao longo de seus diálogos, Platão não deixa claro o que é o bem, mas podemos inferir que a essência do bem é a ideia suprema, o Uno. É, pois, função da educação possibilitar ao homem atingir a ideia suprema, alcançar a essência do bem. Assim, é necessário liberar a alma da prisão e da obscuridade da opinião (doxa) (LAZARINI, 2007, p. 47).

            A libertação da alma do filósofo, é “orientada para uma única finalidade: atingir a ideia suprema do bem” (LAZARINI, 2007, p. 38), pois essa ideia consiste na “elevada das ciências, e que para ela é que a justiça e as outras virtudes se tornam úteis e valiosas” (LAZARINI, 2007, p. 38).

            Cumpre notar que existe uma relação muito próxima entre a ética e a política, o indivíduo e a sociedade. Podemos perceber isto no diálogo A República (é neste diálogo que podemos ler a Alegoria da Caverna) onde Platão discute, através do personagem de seu mestre Sócrates, o conceito de justiça (individual e socialmente falando).

Com feito, tais ideias, Platão as aproxima magistralmente em sua obra “A República” (Politeia), na qual teremos, ainda, que virtude individual e virtude coletiva são inseparáveis, isto é, ninguém pode alcançar sua excelência fora da polis, o que demanda também que a polis seja virtuosa (FERRAZ, 2014, p. 30).

            Neste diálogo busca-se definir os conceitos de justiça tanto para o indivíduo quanto para o estado levando em conta a constituição da cidade ideal.

[...] teremos, em Sócrates e Platão, uma aproximação entre ética e justiça. Aqui a ideia de justiça é indissociável da ética mesma. Ela (a justiça) estará ligada à ideia supramencionada de “atividade própria”, da realização cada vez mais sofisticada da função de cada parte que constitui um todo, seja de um homem, seja da polis (FERRAZ, 2014, p. 30).

            Platão define justiça como princípio de equilíbrio do indivíduo e da sociedade e liga-o ao conceito de virtude. No caso de um governante a sua virtude é a sabedoria para que haja com justiça, já que esta é o maior valor ético que guia as condutas dos homens e para que esta virtude seja alcançada o homem deve buscar o bem em si mesmo, tanto com relação ao bem individual quanto ao social.

            A política é a organização harmoniosa entre as três classes que Platão define em sua obra: em que os dirigentes portadores da mais alta racionalidade governam a cidade segundo a justiça, em que a razão domina a coragem e a concupiscência.

Em relação ao projeto educativo do rei-filósofo, significa que esse dirigente, na qualidade de governante da pólis, precisa superar o mundo sensível, logo, superar as aparências, as crenças, a ignorância, a irracionalidade, enfim, o mundo das opiniões, tendo em vista atingir o mundo inteligível (OLIVEIRA, 2015, p. 200).

            A cidade forma-se por três classes: A classe dos magistrados (filósofos) encarregados pela direção suprema, da legislação e da educação de todas as classes; dos guerreiros encarregados pela defesa do estado, ordem social e política estabelecida contra os inimigos de dentro e de fora; e a classe dos agricultores, comerciantes e artesões que tem um papel econômico e está submetida as duas classes superiores.

            A proposta de Platão liga-se as ideias de justiça e do bem sendo este último o valor supremo que sustenta a justiça com relação à organização política e à conduta individual. O equilíbrio gerado pelas três partes da alma (a alma concupiscível, a alma irascível e a alma racional) e da cidade gera equilíbrio, harmonia e felicidade. Na teoria filosófica de Platão cada parte da alma humana está relacionada com uma virtude específica sendo de suma relevância para a ética. A virtude da sabedoria corresponde a parte racional da alma, a virtude da coragem à alma irascível e a virtude da temperança à alma concupiscível. Cada uma das partes da alma possui suas funções específicas sendo que a alma racional controlaria as outras partes para que ambas hajam de maneira correta e coesa e a justiça é a harmonia entre todas elas, tanto no indivíduo como na sociedade. Relacionando essa teoria dentro da organização política temos, com efeito, que “[...] a virtude do governante é a sabedoria, a do guardião a valentia e a do artesão é o sereno domínio de si próprio” (FERRAZ, 2014, p. 34).

            Assim o estado político de Platão tem a mesma relação da ética da alma em que a cidade justa é aquela em que os filósofos governam, os guerreiros defendem e os produtores, camponeses e artesãos provem a subsistência da cidade. E para que a justiça possa imperar na organização política e social, e para que os indivíduos se transformem em homem sábios e virtuosos, é preciso se libertar da prisão do mundo sensível e contemplar a verdadeira essência espiritual de cada um de nós.

O pano de fundo, aqui, é a metafísica platônica, segundo a qual há o mundo visível, das opiniões, e o mundo inteligível, da verdade e do conhecimento. Com efeito, é somente no mundo inteligível que saímos da esfera das meras opiniões e adentramos no plano do conhecimento. Noutros termos, o verdadeiro conhecimento envolve um desligamento do mundo dos sentidos (FERRAZ, 2014, p. 34-35).

 

Referências Bibliográficas

ARANHA, Maria Lúcia de A. Temas de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1998.

FEITOSA, Zoraida M. Lopes. A questão da unidade e do ensino das virtudes em Platão. Tese (Doutorado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. Acessado em 24/03/2016.

FERRAZ, Carlos Adriano. Elementos de ética. Pelotas: NEPFil online, 2014. Acessado em 18/03/2016.

LAZARINI, Ana Lúcia. Platão e a Educação: um estudo do Livro VII de A República. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2007.

OLIVEIRA, José Silvio de. A paideia grega. A formação omnilateral em Platão e Aristóteles. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos-SP, 2015. Acessado em 24/03/2016.

RIBEIRO, Djalma. Conhecimento, amor e educação em Platão. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2005. Acessado em 24/03/2016.

 

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