Mas afinal, o que é lugar de fala?

por Luana Pantoja Medeiros

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postado em set. 2019

 

“a máxima saúde hoje é pretender usar a voz”

Belchior

 

            O termo “lugar de fala” tem levantado questionamentos bastante significativos e cada vez mais presentes especialmente em meio a debates de movimentos sociais. A filósofa brasileira Djamila Ribeiro discute o conceito em seu livro “O que é lugar de fala”, com uma abordagem didática e uma linguagem que foge ao academicismo excessivo, sobretudo no que tange a filosofia, naturalmente é uma questão filosófica e retórica, o livro organiza o pensamento de uma série de autoras feministas negras com a finalidade de esclarecer o problema. 

            Existem muitas dúvidas em relação ao conceito, mas é preciso esclarecer que quando a filósofa utiliza o termo “discurso” no decorrer de sua obra e a importância de se interromper com o regime de autorização discursiva, se refere à noção foucaltiana de discurso: “de não pensar em discurso como amontoado de palavras ou concatenação de frases que pretendem um significado em si, mas como um sistema que estrutura determinado imaginário social” (RIBEIRO, 2017, p. 56), tecendo teses relevantes que contribuem para a reflexão sobre a construção de saberes e de esforços no sentido de uma emancipação social.

            A fala é um ato político e por isso mesmo é que existem grandes razões para que lugar de fala seja tema de tantas discussões, gerando conflito e desconforto, muitas vezes, mas necessário. A partir da coexistência de palavra e poder é que devemos pensar o termo, uma questão filosófica e política. O lugar de fala é o lugar democrático em relação ao qual precisamos de diálogo, sob pena de comprometer a luta das chamadas minorias ou minorias políticas. É a partir desse cenário político que as identidades se revelam, por isso não deixa também de ser uma questão de identidade, não individual, mas sob a ótica estrutural.

 

Disponível em: Feminismo Plurais Instagram posts.

Acesso em: 01 set. 2019

 

            O discurso como manifestação de um imaginário social que reflete poder e controle segundo o pensamento foucaltiano, o conceito que se sustenta a obra de Djamila Ribeiro é a de que a consideração e visibilização de lugares de fala historicamente excluídos é relevante para que se permita dar voz a quem nunca pode falar ou falando nunca ocupou espaços privilegiados em que a fala é efetivamente ouvida. Para Wallace Carbo, Mestre em Direito público: 

Lugar de fala não é, na visão da autora, uma questão individual, mas sim estrutural (...) não se trata de reconhecer as vivências específicas de indivíduos como legitimadoras de todo ou qualquer discurso que se vincule às suas particularidades (...) a ideia de lugar de fala é importante quando se considera que grupos sociais independentemente dos indivíduos que os integram passam por certas vivências comuns (mesmo quando não queiram os as neguem), o que é relevante para a forma pela qual contribuem com a reflexão, a crítica e a construção de saberes (CARBO, 2018, p. 249).

            Neste sentido, lugar de fala não deslegitima outros discursos, ao contrário disso, é a partir do reconhecimento da pluralidade dos discursos que iremos entender que eles são produzidos a partir de suas realidades, de seus grupos sociais. Todos tem lugar de fala, mas isso não significa que todos tem acesso a espaços discursivos privilegiados ou que possam ser ouvidos, uma vez que tais grupos não são ouvidos eles passam a não existir. O lugar de fala deve ser nomeado como forma de impulsionar discursos silenciados e de visibilizar as premissas não ditas.

            Como falei anteriormente, lugar de fala é lugar onde se produzem os discursos e a fala é política, Bakhtin em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1981) considera a linguagem inerente às condições de organização da vida em sociedade, por isso, os discursos são produzidos a partir das organizações de classe o que vai ao encontro da tese levantada por Djamila. “Linguagem e sociedade são colocados sob o signo da dialética do signo, enquanto efeitos das estruturas sociais” (BAKHTIN, 1981, p. 6-7). 

            Djamila acrescenta que nas redes sociais é bastante comum encontrar grupos que mencionam o lugar de fala, afinal os canais de redes sociais são redutos de lugares de fala, grupos feministas, feministas negras, LGBTs, grupos religiosos e etc, só que muitas vezes há um problema quando esses grupos são sectários, não aceitando ampliar ou prosseguir discussões com outros grupos sociais, nesse sentido acontece um esvaziamento de conceitos importantes por conta dessa urgência que as redes acabam gerando: “ou porque grupos que sempre estiveram no poder passam a se incomodar com o avanço de discursos de grupos minoritários em termos de direitos” (RIBEIRO, 2017, p. 56).

            Sob a ótica de permissão discursiva podemos estender à temática não somente em relação ao direito discursivo, mas também jurídico. Carbo declara que lugar de fala pode contribuir para o Direito, afinal é um importante campo de avanço de reivindicações sociais e, portanto, um importante espaço de luta por reconhecimento de diversas formas de existir. “Promover a voz de grupos marginalizados, nesse contexto, é essencial para garantir a efetivação daquela emancipação social desejada pela Constituição de 1988 (cf. art. 3º, IV da Constituição)” (CARBO, 2018, p. 250).  

            A visibilização do lugar de fala é um primeiro passo para superar uma das marcas do pensamento jurídico, o fato de que tem sido historicamente construído por e para um sujeito específico, para ser exemplificativo, um sujeito masculino, branco, heterossexual, cisgênero, proprietário e cristão.

            No campo da literatura o lugar de fala surge com a nomenclatura de literatura marginal, ou literatura de alteridade visibilizando escritores (as) e personagens que sempre estiveram à margem social, aqueles que sempre tiveram as suas histórias contadas, comentadas ou ocultadas por grupos socais do qual esses não pertenciam.

            Lugar de fala ainda é nas palavras de Djamila, uma forma de restituir humanidades negadas. É claro que ao se tentar restituir humanidades aos sujeitos discursivos historicamente silenciados ocasiona certo desconforto por parte daqueles grupos que foram privilegiados.

           É necessário ainda ampliar a discussão para que o termo não se perca em um esvaziamento de conceitos importantes, é necessário entender que todos têm lugar de fala e que é a partir das diferentes produções de conhecimento que esse lugar se efetiva.

            Assim como na obra Lugar de fala, Djamila apresenta o problema a partir de discussões levantadas por feministas negras, essa discussão deve ser aplicada a todas as áreas do conhecimento, contribuindo fortemente para uma emancipação do pensamento social e colonial.

            O lugar de fala não retira a permissão discursiva de ninguém, ao contrário, ele viabiliza. Somos diferentes, temos percepções diferentes, nossos discursos, como afirma Bakhtin, são produzidos a partir da condição de organização de nossas vidas em uma sociedade de classes e por isso são diferentes, o que pode e deve acontecer. O que não pode mais é ainda ignorar grupos inteiros, desprezar saberes ou depreciá-los em detrimento de outros.

            O lugar de fala democratiza e amplia o lugar de sujeitos. Por isso enfatizo que a partir dessa tese, que se pretende efetivar direitos, poderemos avançar com políticas públicas para que assim possamos alcançar também a efetivação de direitos civis a todos e todas que há muito tempo vêm pretendendo utilizar a voz na dolorosa tentativa de existir e resistir aos silenciamentos que negam e excluem pessoas todos os dias.       

    

Referências Bibliográficas

BAHKTIN, Mikhail; VOLOCHÌNOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Editora Hucitec, São Paulo, 1981.

CORBO, Wallace de Almeida. Resenha: “O que é lugar de fala?” e por que ele importa para o Direito? Revista Publicum, Rio de Janeiro, v.4,n.1, 2018, p.248-251.https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/publicumDOI: https://doi.org/10.12957/publicum.2018.35205

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

 

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