Movimentos Sociais e Conselhos de Políticas Públicas

           Ao que sabemos, dentro da história de nosso país, a criação dos Conselhos de Políticas Públicas é fruto das lutas sociais, que foram realizadas pelos segmentos da sociedade civil, desde movimentos de sindicatos, classe trabalhadora, união estudantil, ONGs, entre outras, e vem ganhando cada vez mais destaque no cenário nacional do ponto de vista de pesquisadores e estudiosos que demonstram interesse em compreender a dinâmica e as formas de funcionamentos de tais espaços.

            A criação dos Conselhos como fruto das lutas sociais, segundo Gohn (1997) se materializa e tem impulso forte com a consolidação da Constituição Federal de 1988, quando se cria do ponto de vista legal as condições para a instituição de tais Conselhos. Logo é um órgão legal, criado com a força da sociedade civil organizada e por ela é utilizada na garantia de atuar junto ao Estado desde a criação à execução de Políticas Públicas.

            Analisando a história das lutas sociais e refletindo sobre a criação dos Conselhos, percebe-se que a sua origem na realidade remonta a experiências anteriores a própria Constituição, como nos aponta as ideias de Sheila Cunha ao dizer que:

Os Conselhos têm origem em experiências de caráter informal sustentadas por movimentos sociais, como “conselho popular” ou como estratégias de luta operária na fábrica, as “comissões de fábrica”. Essas questões foram absorvidas pelo debate da Constituinte e levaram à incorporação do princípio da participação comunitária pela Constituição, gerando posteriormente várias leis que institucionalizam os Conselhos de Políticas Públicas (CUNHA, 2003, p.02).

            Os Movimentos Sociais representam um papel fundamental na constituição dos Conselhos pois, via de regra, para que os conselhos possam funcionar, eles precisam obedecer o princípio da paridade, que determina que metade dos seus conselheiros[1] sejam representantes da sociedade civil organizada. Ao compor a estrutura dos Conselhos, os movimentos sociais devem se articular junto com representantes do poder público no sentido de contribuir com o processo de deliberação de Políticas Públicas, além de realizar um importante papel de fiscalização e Controle Social. Esse caráter paritário foi reforçado pela Norma Operacional Básica 01/93 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1993). Além disso, quanto maior o número de Conselhos, maior deve ser o número de representantes da sociedade civil envolvidas neste processo, como condição necessária de participação enquanto instrumento de democratização do Estado (O’DWYER; MOISÉS, 1998).

            Francini Guizardi e Roseni Pinheiro, ao analisar os dilemas sócio políticos de participação dos movimentos sociais nos Conselhos de Saúde, consideram importante destacar os aspectos positivos da experiência de representação dos movimentos populares nos Conselhos, pois

[...] os conselhos de saúde permitiram aos movimentos populares, [...] aproximar-se e conhecer melhor o mundo da Saúde Pública. Nesse contato, as demandas da sociedade ganham expressão, forçando um posicionamento das instituições, ainda que não cheguem a consolidar-se como uma proposta de agenda para o poder público (2006, p. 803).

            Há algo de “novo” neste cenário. A presença ativa de novos atores que participam, fiscalizam, deliberam sobre as formas de atuação do poder público, ainda que tais discussões nem sempre possam ser acolhidas pelos gestores públicos e a despeito de uma série de problemas e dificuldades que limitam as formas de participação da sociedade civil organizada em tais espaços[2]. Além disso, os Conselhos não são espaços neutros, isentos de conflitos, contradições e até mesmo de manipulações por parte de grupos políticos, mas é um espaço fundamental aberto ao debate público, às proposições de estratégias para efetivar direitos já conquistados ou a construir. Trata-se de mais um espaço de luta, de negociação e articulação, repleto de limitações e ambiguidades, mas também de oportunidades e desafios.

Novas redes de participação institucionalizadas foram criadas com os conselhos, câmaras, fóruns e assembleias nacionais, implementadas pelo poder público por meio de políticas sociais para atender às novas exigências constitucionais [...] para entender a construção e a dinâmica do sujeito nos movimentos e redes sociais civis na atualidade, é necessário entender as novas políticas institucionalizadas do país. Redes civis focadas em projetos socioculturais, entidades geradoras de renda via economia solidária, parcerias público-privado em projetos socioeducativos nas escolas etc. passaram a dominar a cena do associativismo no novo século, fortalecendo o campo de uma cultura comunitária local, com ativistas focados no cumprimento de metas dos projetos sociais envolvidos, e não mais militantes de causas e organizações com vínculos político-partidários e sindicais (GOHN, 2014, p. 58).

            Talvez se esteja diante daquilo que Vera Teles (1994) chama de “nova contratualidade”, ou seja, um novo tipo de “Contrato social” entre o Estado e a sociedade onde há uma participação direta e efetiva de membros da sociedade civil organizada, através de Movimentos Sociais, movimentos populares, associações de bairros, ONGs, entre outros caracterizado pela interlocução e negociação de interesses nas relações dos movimentos sociais com o Estado. Desta forma, os movimentos sociais têm procurado assumir um papel mais propositivo, com razoável eficácia no sentido de formular alternativas de políticas públicas, negociando com atores governamentais nos espaços dos Conselhos de Políticas Públicas as proposições em temáticas específicas.

            Outro fato que denota um certo fortalecimento e maturidade dos movimentos sociais, como aponta Pessoto, Nascimento e Heimann (2001), é o fato de hoje em dia o presidente dos Conselhos poder ser um representante da sociedade civil organizada. Tal fato, segundo os pesquisadores, merece análise e reflexão no sentido de saber como a eleição de sua presidência pode ter alterado o poder de decisão dos Conselhos e como a presidência de um Conselho pode também inibir este poder de decisão, considerando que o seu presidente seja um representante do poder público ou da sociedade civil.

            Vêem-se então os Conselhos como co-gestores e/ou intermediadores entre Estado e Sociedade Civil, tendo seus raios de influência em todas as esferas, em âmbito federal, estadual, municipal, e as operacionalizações das políticas públicas, onde se faz também a materialização do controle social, por meio das deliberações que vão servir de base para as tomadas de decisão de cunho público[3].

            No que tange aos meios de Controle Social os movimentos sociais organizados são importantes instrumentos de fiscalização e suas ações são materializadas quando atuam dentro dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, efetivando seus ideais de forma legal e junto ao Estado, de maneira organizada, além de deliberar o que for em prol do bem coletivo.

            Diante desse caráter fiscalizador que possui os meios de controle social, presenciamos como podem se efetivar as ações dos movimentos sociais dentro dos Conselhos, haja vista que os mesmos realizam essa tarefa primordial em prol da sociedade civil, visando fiscalizar, controlar e intervir nas ações governamentais, efetivando um modelo de Democracia Participativa.

            Por outro lado, os Conselhos perdem sua força quando não há participação social da população dentro destes órgãos, fragilizando as forças legais que possuem os instrumentos de controle social[4] que emanam dos Conselhos Gestores, ficando a cargo pincipalmente dos agentes públicos.

            Estes instrumentos legais de controle social da sociedade civil, os Conselhos, atuam em demasiados setores que atendem a sociedade, seja na Educação, Saúde do IdosoMeio Ambiente, Assistência Social, Direitos Humanos entre outros.

            Do ponto de vista do controle social e fiscalização das ações do poder público do ponto de vista orçamentário, é válido mencionar as experiências do Orçamento Participativo. É importante ressaltar esta experiência tendo em vista que dentre as competências dos Conselhos está a de participar da elaboração do orçamento, ou seja, da elaboração das Leis Orçamentárias (LOA, LDO, PPA)[5] referentes a área de atuação específica de um Conselho.

[...] os conselhos criam condições para que haja um sistema de vigilância sobre a gestão pública e levam a uma maior cobrança de prestação de contas sobre o Poder Executivo, principalmente no nível municipal (GOHN, 2006, p.09).

            Todos estes atuam de forma específica dentro da área em que trabalham, contudo é valido reforçar que em todos eles é importante a participação da população, uma vez que é para esta que estes trabalham, garantindo a justiça social, efetivando e defendendo a Democracia Participativa.

            Além de exercer um papel de controle social os Conselhos têm também um caráter Deliberativo com o objetivo de fazer com que através do diálogo entre o Estado e a Sociedade se possa atuar em função do interesse coletivo, já que o Estado tem sido ineficiente neste aspecto, sobretudo de setores mais excluídos, além de fortalecer o papel de cada representação na implementação de políticas públicas. Os conselhos podem constituir-se num canal para que isso aconteça, em razão do maior ou menor poder de articulação entre os próprios representantes dos usuários e da sua capacidade de construir um consenso em torno das questões centrais de seu interesse.

            Nas reuniões plenárias dos Conselhos podem ser apresentadas as demandas referentes à qual setor este conselho atua, tendo a participação de outros órgãos públicos que vão até os Conselhos para apresentar propostas a serem negociadas ou mesmo justificar/esclarecer os questionamentos que pela sociedade pode ser feita no tocante a gestão publica, aceitando a participação da população em geral.

            A existência dos Conselhos como espaços de deliberação, interlocução e articulação entre diferentes atores sociais e de controle social do Estado constitui-se um desafio e uma oportunidade de fortalecimento da sociedade civil e da democratização do Estado. E os movimentos sociais têm um papel fundamental a desempenhar neste processo. Os desafios são vários, e incluem desde maior organização dos movimentos até mesmo maior qualificação da participação e de seus atores para que os Conselhos possam intervir direto e de forma bastante significativa dentro da gestão pública, executando ações de cobranças, tanto de prestação de serviços quanto da transparência da verba pública que os gestores devem aplicar e da elaboração e implementação de Políticas Públicas.

 

NOTA

Sobre a importância da transparência na Administração Pública, veja em nosso website a seção Publicidade.

 

            Os resultados expressos por diferentes pesquisas apontam para dificuldades de consolidação dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas como espaços públicos de deliberação participativa. Os problemas que limitam esta prática são de uma gama extremamente variada, que vão desde práticas políticas clientelistas e eleitoreiras, até a falta de habilidade e capacitação técnica e política de seus conselheiros, com ênfase nos representantes da sociedade civil.

            O estudo de caso realizado por Francini Guizardi e Roseni Pinheiro (2006) aponta para algumas destas dificuldades, como no relato de uma das entrevistadas:

Entrevistadora: Como foi essa primeira experiência no conselho?

Entrevistada: De se sentir perdida, de não estar entendendo nada, de estar ocupando um cargo que não estava à altura dele. Mas achei que estivesse todo mundo preparado, e que eu não, mas todo mundo ficou do mesmo jeito [...] (Pastoral da Saúde, Vitória) (2006, p. 801).

            E também em um relato de um funcionário da Caritas[6]

Eu sinto muita fragilidade dos movimentos populares, na participação com a mesma discussão. Porque você vê conselheiros que, por não serem técnicos da área, ou por serem voluntários, entram mudos saem calados, não participam efetivamente, não têm noção do que que é (id., 2006, p. 802).

            Francini Guizardi e Roseni Pinheiro falam ainda do período de observação de campo onde constataram que:

[...] os representantes da Pastoral não apresentaram, nas reuniões dos conselhos, questões ou temas relacionados à prática do movimento [...] Observamos que a dependência do poder público por parte do movimento popular de Vitória, e também por parte da Pastoral desse município – em função de parcerias realizadas – faz com que a participação política desses atores sociais demonstre fragilidade no que concerne à autonomia de seu posicionamento (2006, p. 802).

            Vemos assim como a existência dos Conselhos impõe uma série de questões que precisam ser avaliadas e analisadas por seus diferentes atores: a formalização dos Conselhos tem contribuído, de fato, com o processo de redemocratização do Estado brasileiro? Transforma as políticas públicas na “direção” pretendida? As expectativas de maior participação social têm se concretizado nestes espaços? Os movimentos sociais têm cumprido com seu papel nos mais diferentes Conselhos existentes em todo o Brasil?

            E mesmo que tais perguntas não possuam respostas diretas e simples, é em torno de tais análises que será possível consolidar o papel para o qual os Conselhos foram criados com a intervenção direta e necessária dos movimentos sociais.

 

Referências Bibliográficas

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 48. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2015.

CUNHA, Sheila Santos. O Controle Social e seus instrumentos. Controle Social, Salvador, 2003. p. 1-12. Acesso em: 06/11/2014.

GERSCHMAN, Silvia. Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das comunidades populares. Cad. Saúde Pública, 20(6):1670-81, 2004. Acessado em 01/09/2015.

GOHN, Maria da Glória. Conselhos gestores e gestão pública. Revista Ciências Sociais Unisinos, Rio Grande do Sul, v. 42, n. 1, p. 5-11, jan/abr. 2006. Acesso em 01/09/2015.

____. Teorias dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

____. Sociologia dos Movimentos Sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2014. (Questões da nossa época, 47).

GUIZARDI, F.L. Participação política e os caminhos da construção do direito à saúde: a experiência da Pastoral da Saúde nos municípios de Vitória e Vila Velha Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). Instituo de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.

GUIZARDI, Francini L.; PINHEIRO, Roseni. Dilemas culturais, sociais e políticos da participação dos movimentos sociais nos Conselhos de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 11(3): 797-805, jul./set., 2006. Acessado em 01/09/2015.

O’DWYER, G. C.; MOYSÉS, N. M. N. Conselhos municipais de saúde: o direito de participação da sociedade civil? Ciência & Saúde Coletiva, 3:26-27, 1998.

PESSOTO, Umberto C.; NASCIMENTO, Paulo R.; HIEMANN, Luiza S. A gestão semiplena e a participação popular na administração da saúde. Cadernos de Saúde Pública, 17(1):89-97, jan./fev., 2001. Acessado em 01/07/2015.

TATAGIBA, L. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: DAGNINO, E. (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 47-104.

TELLES, Vera da Silva. Sociedade civil e a construção de espaços públicos. In: DAGNINO, Evelina. Anos 90-política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994.

WENDHAUSEN, A; CAPONI, S. O diálogo e a participação em um conselho de saúde em Santa Catarina, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 18(6):1621-1628, nov./dez., 2002. Acessado em 01/07/2015.

 

 

 



[1] Indivíduos da sociedade que participam dentro dos conselhos como agentes fiscalizadores e contribuem para as deliberações, por meios de princípios democráticos.

[2] Veja por exemplo os dois projetos de pesquisa de iniciação científica em nosso website (especificamente os capítulos que tratam da análise e dos resultados da pesquisa) que fazem um estudo de caso específico do Conselho Municipal de Saúde da cidade de Parintins/AM, seja do ponto de vista da deliberação de políticas públicas ou enquanto órgão de controle social: Participação e controle social no Conselho Municipal de Saúde de Parintins/AM e Políticas públicas e conselho municipal de saúde: desafios da democracia deliberativa em Parintins/AM.

[3] Um estudo sobre as práticas de participação dos atores sociais no cotidiano dos Conselhos de Políticas Públicas, com ênfase nos Conselhos de Saúde foi realizado por Francini Guizardi e Roseni Pinheiro (2006).

[4] Vários estudos tem apontado aspectos que representam obstáculos ao exercício do Controle Social, veja por exemplo: GUIZARDI (2003); PESSOTO; NASCIMENTO; HIEMANN (2001); TATAGIBA (2002); WENDHAUSEN; CAPONI (2002); GERSCHMAN (2004).

[5] LOA: Lei Orçamentária Anual; LDO: Lei de Diretrizes Orçamentárias; PPA: Plano Plurianual. Ver em nosso site: Orçamento Participativo.

[6] “pessoa jurídica vinculada à Igreja Católica, que assessora os trabalhos pastorais e de assistência social e que tem acento em diferentes conselhos” (GUIZARDI; PINHEIRO, 2006, p. 800).

Ciência PolíticaMovimentos Sociais → Movimentos Sociais e Conselhos de Políticas Públicas

Veja Também:

 

1. Para uma análise mais aprofundada do papel dos Conselhos de Políticas Públicas (e a importância dos Movimentos Sociais neste modelo), veja a publicação da nossa Tese de Doutorado: Conselhos de Políticas Públicas, Política Deliberativa e Educação Popular


2. Movimentos sociais e conselhos de saúde: desafios e possibilidades para o protagonismo social

Apresentação de Slides

 

1. Movimentos Sociais e Conselhos de Saúde