O insistente descaso com o Saneamento Básico no Brasil

Por Paulo Cesar Vieira Archanjo

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postado em mar. 2017

            Saneamento é tão essencial à vida humana, que requer uma análise sistêmica, pois vários elementos interagem na sua composição. Saneamento está vinculado com condutas higiênicas da população, tecnologias disponíveis, políticas públicas, controle social, equilíbrio do meio e saúde ambiental. Acrescente-se a isto o foco do saneamento relacionado a ações de “intervenções físicas do homem no meio, para seu conforto, bem-estar e proteção de sua salubridade, e vão evoluindo à medida que as civilizações tornam-se mais complexas” (REZENDE; HELLER, 2008, p.86).

            O conceito de saneamento está fortemente conectado a vida saudável. Para Heller e Rezende (2008), saneamento é “[...]conjunto de iniciativas que visam criar condições adequadas à vida, protegendo a saúde humana, por meio de intervenções no meio ambiente, no sentido de torná-lo produtor de saúde” (Ibid., p. 67).

            A precariedade ou total ausência de saneamento básico potencializam a proliferação de algumas doenças, e geração de determinados desconfortos. O passado na humanidade foi marcado por epidemias devastadoras, potencializadas, geralmente, pela falta de conhecimento científico sobre a relação entre enfermidades e ausência de saneamento básico.

            Infelizmente o Brasil, em pleno século XXI, está aquém de criar e manter um complexo de saneamento ambiental que privilegia a saúde humana e o equilíbrio ambiental. São gravíssimos os problemas de saneamento básico, com destaque ao esgotamento sanitário inadequado e sua relação com as doenças.

           Dados publicados pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SINIS,2017), 10 anos após o lançamento da Lei do Saneamento Básico no Brasil, indicam que somente a metade da polução brasileira possui acesso a sistemas de esgotamento sanitário, ou seja, mais de 100 milhões de pessoas utilizam iniciativas particulares para equacionar o problema do escoamento sanitário.

            A Lei do Saneamento Básico -11.445/2007 - prioriza a construção de sistemas de esgotamento sanitários nas cidades. Caso inexista tais ações, as soluções individuais, como construções de fossas domésticas são permitidas, desde de que não afetem negativamente o ambiente. Assim na ausência de políticas públicas de saneamento, cada cidadão dá seu jeito ou jeitinho para tornar seu ambiente o mais saneado possível.

          O jeitinho pode ser compreendido por DaMatta[1] “[...]como um instrumento que ajuda a navegar no oceano turbulento do cotidiano brasileiro, um dia-a-dia marcado pelo inferno das incoerências entre as leis explícitas[...] e as práticas sociais”. Na opinião da antropóloga Lívia Barbosa, em sua obra intitulada “O jeitinho brasileiro- a arte de ser mais igual que os outros” (1992, p.32), esse jeitinho é usado de maneira criativa para resolver problemas ou situações definidas como difíceis no dia a dia, “[...] seja sob a forma de burlar alguma regra ou norma preestabelecida”. Umas das soluções ou jeitinhos mais conhecidos é lançar águas servidas dos domicílios em vias públicas ou no meio hídrico (ARCHANJO,2016). 

            Na região norte os indicadores de saneamento são muito preocupantes, pois somente 8,7% da população tem acesso a rede de esgoto, e somente 16,4% do esgoto é tratado ante de ser lançado no ambiente.  Apenas 24 municípios do norte brasileiro são atendidos com o esgotamento sanitário. No entanto, em relação ao abastecimento de água os números são bem diferentes, pois 291 municípios são beneficiados por este serviço de saneamento (SINIS,2017).

            Em muitas cidades brasileiras, o investimento em saneamento básico, geralmente se concentrou no abastecimento de água e coleta de lixo, ficando o esgotamento sanitário relegado para um segundo plano. O que Rezende e Heller (2008, p.364) afirmam ser uma fragmentação da política sanitária brasileira, já que o esgotamento sanitário é que apresenta maior déficit em nosso país, e o resultado “[...] é o benefício apenas parcial à saúde da população”.

            A cidade de Manaus representa bem está vergonha nacional (ou do norte brasileiro), pois ocupa, entre 100 cidades pesquisadas, a 5ª pior posição no Ranking de Saneamento Básico. Dados do Ranking, publicado pelo Instituto Trata Brasil, indicam que somente 9,9% da população manauara possuem acesso a coleta de esgoto. O documento informa ainda que não houve melhora na expansão do número de Novas Ligações de Esgoto (NLE) em Manaus nos últimos 2 anos, faltando ligar à rede de coleta aproximadamente 1.174.374 domicílios. (TRATA BRASIL,2016).

            O resultado destes preocupantes indicadores sobre o esgotamento sanitário, é que a capital do Estado do Amazonas possui um dos maiores índices de internação por diarreia relacionada à precariedade de saneamento básico.  Manaus estava entre as 10 piores cidades no Brasil em taxa de crianças internadas por diarreia, em 2011. (KRONEMBERGER, 2013).

           Se em Manaus os índices de acesso ao saneamento são precários, o que pensar em relação aos municípios do interior do Estado. Há casos de cidades, como por exemplo Tonantins, onde a população não é atendida por redes de abastecimento de água e muito menos por rede de esgotamento sanitário. Situações sanitárias como estas, tornam as pessoas ainda mais vulneráveis a doenças de veiculação hídrica.

            Em 2009, a Organização Mundial de Saúde – OMS, advertiu que 88% das mortes por diarreia no mundo têm como causa, a precariedade do saneamento básico, atestando, assim, uma relação direta desta doença com a falta ou precarização de saneamento (WHO, 2009). Ainda para a OMS, é preciso investir mais em saneamento, pois a cada dólar investido, seria economizado 4,3 dólares com gastos em saúde no mundo (Ibid., 2014). Percebe-se, deste modo, que o saneamento precário impulsionam problemas de saúde pública, sociais, ambientais e de cidadania.

            A existência de saneamento não extinguiria as infecções gastrintestinais, como a diarreia, por exemplo, mas poderia reduzir sua incidência de forma significativa. Seriam avanços ocasionados pela universalização do acesso ao saneamento básico. Dados de 2013 do Ministério da Saúde (DATASUS), atestam que foram notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrintestinais no país. Caso houvesse a universalização ao acesso à coleta de esgoto no Brasil, haveria uma diminuição, em termos absolutos, de pelo menos 74,6 mil internações (TRATA BRASIL, 2014).

            Além de impacto na saúde da população, a falta de saneamento adequado[2] reverbera também sobre a educação e a economia local. No aspecto econômico o relatório faz menção ao afastamento do trabalho por pessoas acometidas de diarreia, acarretando perdas para empresas e governo. Em 2012, estima-se, por exemplo, que foram gastos, aproximadamente, R$ 1,112 bilhões em horas pagas, mas não trabalhadas de fato, ou seja, pago a trabalhadores acometidos de diarreia ou vômito. Por outro lado, o acesso universalizado ao saneamento implicaria no aumento de produtividade e renda do trabalhador brasileiro, com uma elevação de cerca 6,1% (TRATA BRASIL, 2014).

          No caso da educação, o relatório “Benefícios econômicos da expansão do saneamento”, argumenta que a precariedade do saneamento pode impactar sobre o desempenho dos estudantes. O relatório se apoia nos dados do Programa Nacional de Amostra Domiciliares (PNAD-2012), onde a análise estatística aponta que estudantes que vivem em regiões sem coleta de esgoto possuem uma distorção idade/série maior do que os alunos que moram em locais com acesso a coleta de esgoto (TRATA BRASIL, CEBDS, 2014). O relatório lembra também o impacto negativo que a falta de saneamento adequado pode fazer sobre a atividade do turismo, afastando o turista de lugares que apresentam problema de abastecimento de água ou esgotamento sanitário. Soma-se a isto o fato da falta ou precarização do saneamento contribuir para a desvalorização imobiliária.

            A falta de conhecimento sobre o impacto da ausência de esgotamento sanitário sobre a saúde, no passado, ceifou milhões de vidas. Na atualidade existe conhecimento tecnocientífico, mas as políticas públicas brasileiras neste setor são ineficientes, resultado de descaso histórico das autoridades sobre o tema saneamento básico. No Brasil há falta de planejamento, gestão eficiente e interesse político em resolver um problema que há séculos atormentam a vida das pessoas, sobretudo os mais desprovidos. Mas neste mesmo Brasil, é difícil convencer que o saneamento não caminha em direção da universalização em função da falta de recursos econômicos, é só lembrar a quantidade de dinheiro gasto na construção e reformas de estádios para a copa do mundo em 2014.    

            Tais dados sombrios sobre saneamento das cidades levam não só a refletir sobre esse problema socioambiental, mas a necessidade de discussões na busca de soluções para tais problemáticas. A legislação ambiental é uma das iniciativas vigentes que mostram um movimento da sociedade, embora não ocorram garantias efetivas de aplicações da mesma.

            O grande desafio é sem dúvida universalizar o acesso ao saneamento básico em todo país, efetivando os direitos de milhões de brasileiros a uma boa qualidade de vida. O saneamento é dicotomizado entre ricos e pobres, entre possuidores de ações básicas como água e esgoto e o que estão à margem, os excluídos, aqueles que o bem mais elementar para sobrevivência ainda é precariamente oferecido. São os favelados, os que vivem nas áreas rurais, os que habitam os Estados mais pobres, os submetidos ao descaso (REZENDE; HELLER, 2008).

            O déficit de acesso a rede de esgotos no Brasil expostos pelos precários e vexatórios índices divulgados pelo SNIS, é um retrato de um País que no passado pouco fez e no presente, por não ser prioridade, persiste em sua caminha em passos lentos para resolução do problema em todo território nacional. O fato é que o Brasil tem dívida histórica para com seus cidadãos, principalmente com as classes menos privilegiadas, quando o assunto é saneamento básico. Cidade saneada é cidade habitável, condição primária para a cidadania.

 

Referências

ARCHANJO, Paulo Cesar Vieira. Convivência contínua com esgotos a céu aberto: modos de subjetivação de habitantes de Parintins/Amazonas. Tese  (Doutorado). PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA PPG/CASA – UFAM, 2016.

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro – a arte de ser mais igual que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Plano Nacional de Saneamento Básico. Brasília, DF. Dezembro de 2013. Acesso em: 26 fev. 2017.

BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2013. Brasília: SNSA/MCIDADES, 2014. Acesso em: 26 fev. 2017.

BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2015. Brasília: SNSA/MCIDADES, 2015. Acesso em: 26 fev. 2017.

INSTITUTO TRATA BRASIL. Benefícios econômicos da expansão do saneamento: qualidade de vida produtividade e educação valorização ambiental. Relatório de pesquisa produzido para o Instituto Trata Brasil e o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo, SP: Trata Brasil; CEBDS, 2014. Acesso em: 24 fev. 2017.

INSTITUTO TRATA BRASIL. Ranking do Saneamento 2016. Relatório de pesquisa produzido para o Instituto Trata Brasil. São Paulo, SP. Acesso em: 24 fev.2017.

KRONEMBERGER, Denise (Coord.). Análise dos Impactos na Saúde e no Sistema Único de Saúde Decorrentes de Agravos Relacionados a um Esgotamento Sanitário Inadequado dos 100 Maiores Municípios Brasileiros no Período 2008-2011. Relatório Final. Rio de Janeiro, RJ. Trata Brasil, 2013. Disponível em: http:www.tratabrasil.org.br/datafiles/uploads/drsai/Relatorio-Final-Trata-Brasil-Denise-Versao -FINAL.pdf. Acesso em: 10 dez. 2014.

REZENDE, S. HELLER, L. O Saneamento no Brasil: políticas e interfaces. Belo Horizonte: editora UFMG, 2008.

WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Diarrhoea: Why children are still dying and what can be done. Geneva, Switzerland. ISBN978-92-4-159841-5,2009. Acesso em: 24 fev. 2017.


[1]  Esta frase encontra-se no prefácio que DaMatta escreveu no livro Lívia Barbosa, intitulado “O jeitinho brasileiro – a arte de ser mais igual que os outros”.

[2] Saneamento adequado pode ser compreendido como “Acesso simultâneo aos serviços de abastecimento de água por rede geral no domicílio ou na propriedade, esgotamento sanitário por rede coletora de esgoto ou fossa séptica ligada à rede coletora de esgoto, e lixo coletado direta ou indiretamente” (IBGE, 2014, p. 202).

 

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