Qual a diferença entre o aborto clandestino e os procedimentos estéticos clandestinos?

por Luana Pantoja Medeiros

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julho de 2018

            Não há finitude na definição do ser, “o desejo se apresenta infinito e confere o caráter de infinito ao ser humano” (BOFF, 2015, p. 55). “O ser é infinito” e segundo a filosofia de Boff (2015), o ser só descansa quando encontra o seu objeto finito para repousar o coração.

            Seja a razão da infelicidade localizada no rosto ou no corpo, seja a infelicidade de uma gravidez não desejada, o ser se debruça nessa “infinita busca”, perigosa, influenciável, ora vulnerável, ora superficial, rasa, ou seja, nada têm de infinita.

            Nos últimos meses, tem sido alarmante o número de mulheres que se submetem a procedimentos estéticos clandestinos no Brasil. O que está acontecendo?

            Um comercial de TV compara a traseira de um carro de luxo com o bumbum de uma mulher. O carro é um desejo de um homem bem sucedido. Um bumbum avantajado é desejo de quê ou de quem? De uma mulher que deseja um homem bem sucedido, ou de uma mulher que deseja ser bem sucedida?

            Uma mocinha de 21 anos se submeteu a um preenchimento de glúteos em um salão de beleza, uma bancária morreu após submeter-se ao mesmo procedimento no apartamento do "Doutor bumbum". E todos os dias temos uma notícia que choca, que nos pasma.

            Qual é nosso papel? Mulheres feministas, mulheres de qualquer orientação sexual? É comparar esse fenômeno social atual, com o fenômeno do aborto clandestino. Quem ganha? Quem perde? Quem morre? Quem vive?

            A busca pelo corpo perfeito, pela beleza rasa estética, está à mercê da dominação masculina, fruto do sistema capitalista. A medicina clandestina é fruto desse sistema também, e as maiores vítimas são mulheres pobres.

            Mas o que tem a ver aborto clandestino com procedimentos estéticos clandestinos? Eu arrisco uma sugestão: não somos donas de nossos corpos.

            Uma mulher não se submeteria a um aborto clandestino se tivesse o direito de escolher ir a uma clínica fazer o procedimento seguro e legal, bem como uma mulher que deseja ter um bumbum avantajado não se submeteria a um procedimento clandestino, pelo valor, e não pela qualidade.  Esse fenômeno recorrente é fruto da grande alienação comercial televisiva, nossos corpos são comercializados em propagandas de cervejas e automóveis.

            De um assunto ao outro tem grande diferença, sim.

            Com relação ao corpo perfeito, “desnaturalizando o gênero do aspecto biológico, o gênero passou a ser uma categoria relacional política” (BUTLER, 2015, p. 29), gênero é um ato produzido ou gerado, é questão de escolha.

            Ora, se escolhas são limitadas dentro do sistema de classes que vivemos, a mulher cis hétero é objeto de desejo, a sociedade capitalista é hétero sexista, logo, as outras que assim identifiquem a sua orientação sexual, também sentirão a mesma necessidade, a necessidade de se incluir. Ela passa a desejar ser um objeto de desejo, se isso a fizer sentir-se inclusa no padrão de “normalidade”, “é normal estar na moda, anormal é não estar”. Isso ocasiona angústia e infelicidade, é uma busca finita e rasa, não é um desejo do coração. E essa escolha política é limitada. 

            Com relação ao aborto clandestino, é um fato que vários países diminuíram bastante o número de abortos e, consequentemente de morte em decorrência disso, após legalização, é um assunto polêmico quando na realidade deveria ser tratado como caso de saúde pública. As mulheres morrem na clandestinidade. Passamos a vida inteira na clandestinidade, as margens.  

            As mulheres comportam úteros e ovários, contudo não são depositários vazios da cultura ou da falácia do biologismo. Mas ainda não somos donas de nossos próprios corpos, ainda morremos pelos mesmo motivos, seja por procedimentos estéticos ou por interrupção de uma gravidez não desejada, e no leito do desejo de ser um Ser infinito, quem vai decidir quanto vale a vida de uma mulher, é o dinheiro.

 

Referências

BOFF, Leonardo. Direitos do coração: como reverdecer o deserto. São Paulo: Paulus, 2015.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 9. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

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