Tropeços Linguísticos para Lamentar sem Juízo

28/06/2023 19:58

— Que Deus nos ajuda a resolver os graves problemas morais desta nação! Assim começa o breve discurso daquele parlamentar, o que é para lamentar. Se ainda fosse “nos acuda”...

Mas Ele acudiu-o. Enviou-me a esclarecer-lhe que todos os verbos terminados em “ar”, na terceira pessoa do singular do presente do subjuntivo, devem ser flexionados com terminação em “-e”. Exemplos: ajudar, comprar e pensar: Que Deus (ele) nos ajude; que ela compre; que ele pense...

Já os verbos com terminações –er, -ir: comer, fazer, sair, fugir, acudir, entre outros, da segunda e terceira conjugações, devem ser flexionados, na terceira pessoa do singular do presente do subjuntivo, assim: Que ela coma... Que ele faça... Que ela saia... Que o D. não fuja e que o Senhor nos acuda...

É nessas horas que Deus nos ajuda... Muito bem, Jó, aqui você está usando o presente do indicativo, e não o presente do subjuntivo citado acima.

Continuando sua peroração, o deputado diz: — vinte anos atrás, eu estive em Cuba... E eu monologo baixinho:

— Mas se foi “há” vinte anos, por que o “atrás”, se os gramáticos nos ensinam que o verbo haver, no sentido de tempo passado, dispensa o advérbio atrás? Bastar-lhe-ia dizer: — vinte anos, estive em Cuba... Também a própria flexão do verbo em primeira pessoa já indica quem esteve em Cuba: “eu estive”... Nesse caso, o “eu” é opcional.

Mais adiante, o membro do legislativo sai-se com esta: — Neste país, houveram muitos avanços na área da medicina...

E eu digo para o meu umbigo:

— Coitado, não aprendeu na escola que o verbo “haver” com o significado de “existir”, “ocorrer”, não se flexiona no plural; caso contrário, ele diria que houve muitos avanços... Por outro lado, se ele não está no país a que se refere, deve dizer “Naquele país”, “Nesse país”, e não “Neste país” (Cuba).

Corrigindo o congressista: Nesse país (Cuba, onde ele esteve vinte anos atrás), houve muitos avanços na medicina... Percebeu, leitor, que, na frase entre parênteses, dispensei o e apenas mantive o atrás? Quando o está presente na referência a tempo passado, não precisa do atrás; e o contrário também é certo: havendo atrás não é necessário na indicação de tempo passado. A objetividade é outra qualidade importante da comunicação, por isso, cortei o “há” na frase corrigida acima.

Outro problema de muita gente boa é com a pronúncia de certas palavras. Um juiz disse à sua secretária num tribunal:

— Dona Tempesta, peça ao Dr. Epílogo para apor sua rúbrica na petição.

Como é que pode? O homem chegou a juiz, está sempre falando uma palavra usual no fórum equivocadamente e jamais o chamaram à parte para lhe dizer:

— Excelência, a pronúncia desta palavra não é “brica” e, sim, “rubrica”.

Com economia de palavras, o juiz poderia dizer: “[...] peça ao Dr. Epílogo para rubricar a petição”.

O promotor, para não ficar atrás do magistrado, acusou o réu com a seguinte catilinária:

— Esse cabra é um delinguente que assassinou sua vítima com “ineksorável” crueldade.

Delinquente, doutor, corrigiu-o o defensor público em particular. E outra coisa, a pronúncia de “inexorável” não é com “ks”, mas sim com “z”. Escreve-se com “x”, mas pronuncia-se com “z”. Assim, ó: “inezorável”. Volte lá e peça desculpas pelo “açaçinato” do “indioma”.

Amigo leitor, na dúvida da pronúncia ou grafia dum vocábulo, consulte o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, o quase desconhecido VOLP, ou um bom dicionário atualizado do idioma pátrio. Eles trazem, entre barras, a letra indicadora da pronúncia do x, que ora pode ser /ks/, como em anexo, ora /ch/, como em xícara, ou /z/ como é o caso de inexorável.

Até aqui, tudo bem, o problema foi quando o defensor pediu ao juiz:

— Excelência, “desiguína” outra testemunha para depor...

E o promotor deu-lhe o troco:

— Também o nobre colega errou na pronúncia de “designa”; então, estamos quites, pois esta palavra se pronuncia /dezígna/.

Ansioso pelo fim do caso, o juiz ordenou à secretária:

Hajam vistas os graves gravames idiomáticos dessa seção, decido suspendê-la para que, somente após esclarecidos todas as dúvidas linguísticas, eu a possa concluir.  Destarte, determino à dona Tempesta que faça a revisão de nossos textos e nos encaminhe, tempestivamente, uma cópia da sentença dessa audiência.

Antes de ser demitida, a secretária entregou ao seu chefe o seguinte texto:

Haja vista a nossa ignorância, somente haverá o epílogo desta sessão quando um bom professor de língua portuguesa nos facultar que sejam esclarecidas todas as dúvidas linguísticas desta audiência.

Coitada, foi punida por ser a única que sabia escrever corretamente e com estilo.

Agora, tenta inutilmente ser contratada como professora de português naquele fórum. Porém, desde então, quem, diariamente, passa por aquela vara lê o seguinte aviso: “Audiência ‘só mente’ amanhã”.

 

 

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Sobre o Autor

Jorge Leite de Oliveira é

Consultor Legislativo aposentado da CLDF. Formação acadêmica: Bacharel em Direito (Advogado, OAB/DF 16922); grad. em Letras (UniCEUB); pós-grad. em Língua Portuguesa(CESAPE/DF) e em Literatura Brasileira (UnB); Mestre em Literatura e Doutor em Literatura pela UnB. Professor de Língua Portuguesa, Redação, Orientação de Monografia, Literatura e Pesquisas, no UniCEUB, de 1º set. 1988 a 1º jul. 2010. Palestrante, escritor, revisor e articulista espírita. Autor do Blog: <jojorgeleite.blogspot.com/>.

 

Autor dos livros:

1. Texto acadêmico: técnicas de redação e de pesquisa científica. 10. ed. 1. reimp. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

2. Guia prático de leitura e escrita. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

3. Chamados de Assis: espaços fantásticos do Rio mutante na obra machadiana. Curitiba, PR, 2018.

4. Da época de estudante de Letras: edição esgotada: Mirante: poesias. Brasília: Ed. do autor, 1984.

5. Texto técnico: guia de pesquisa e de redação. 3. ed. rev., ampl. e melhorada. Brasília: abcBSB, 2004 (também esgotada).

 

Contato:

jojorgeleite@gmail.com